Páginas

Mostrando postagens com marcador Autogestões. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Autogestões. Mostrar todas as postagens

5.3.25

E o "Bem Cassi" terceirizado lá de 2020? Deu em quê?


Apresentação do blog:

Escrevi sobre o plano "Bem Cassi", modelo de terceirização da atividade-fim da Caixa de Assistência (Cassi), faz mais de 4 anos (em 09/12/20). Como está o plano na atualidade? E o projeto? Ao reler o que escrevi em 2020 me parece que as preocupações que apresentei seguem atuais.

William


"Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo." (ROSA, 2001, p. 32/33)


OPINIÃO


A Cassi apresenta projeto que claramente visa terceirizar o que a Caixa de Assistência tem de melhor, a Atenção Primária e a Estratégia de Saúde da Família, desenvolvidas através das CliniCassi, essência do modelo assistencial que possibilitou o menor custo assistencial de participantes vinculados à ESF em graus complexos de necessidades mesmo nas maiores faixas etárias. Ao invés de ampliar o modelo próprio, de baixo investimento e de bom custo-benefício, direção opta por terceirizar a atividade-fim da Cassi, uma triste escolha ideológica


Terceirização é uma praga! O capitalismo parece invencível, mesmo sabendo que a vida é a grande derrotada com a vitória do modo de produção capitalista, cujo foco absoluto é o lucro e a mais-valia dos explorados em benefício de pouquíssimos humanos. Com a hegemonia do capitalismo neoliberal tudo na sociedade humana gira em torno desse sistema de acumulação de tudo nas mãos de poucos. A terceirização faz parte dessa lógica.

Sinceramente, eu não sei como começar esse artigo. Perdi o jeito para tratar de assuntos mais técnicos como fiz ao longo de muitos anos ao falar de saúde e de sistemas de saúde como gestor eleito de uma autogestão dos trabalhadores, enfim, enquanto meu lugar de fala foi como diretor de saúde da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (jun/2014 a mai/2018) escrevi mais de 600 textos a respeito dos temas de interesse dos trabalhadores na área de saúde. Aliás, eu tinha um público preferencial como leitor: os formadores de opinião, lideranças e representantes dos associados da Cassi, trabalhadores da ativa e aposentados do BB.

RESPEITO A OPINIÃO DE QUEM PENSA DIFERENTE

Em primeiro lugar, quero registrar que minha opinião sobre esse processo de terceirização da atividade fim da Cassi é uma opinião respeitosa, feita no plano das ideias. Eu conheço parte dos colegas que estão na gestão de nossa Caixa de Assistência, e respeito a opinião deles. Sou defensor ardoroso da ampliação da ESF para o conjunto dos participantes Cassi, todos sabem disso. 

A questão de minha divergência é quanto à estratégia adotada de terceirizar a essência da Cassi. Vejo com muita preocupação isso, tanto no presente quanto no futuro. A epígrafe inicial, do personagem Riobaldo Tatarana, traz sabedoria e um alerta aos defensores da APS/ESF na Cassi: "Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar".

NÃO SE ABRE À CONCORRÊNCIA O QUE SE TEM DE MAIS PRECIOSO

Certa vez, ainda jovem, quando participava de estudos sobre autoconhecimento, aprendi que os seres humanos seriam julgados nos finais dos tempos ou no dia do julgamento final - dependendo de como cada um vê essas questões metafísicas - os humanos seriam julgados de acordo com o conhecimento que tinham, de acordo com o que fizeram ou que não fizeram quando poderiam ter feito. Os mestres diziam aos estudantes que quanto mais conhecimentos adquiríamos, maior seria o peso do julgamento de nossos erros porque não poderíamos alegar ignorância ("não-saber", no sentido respeitoso) e desconhecimento das coisas. Nesse sentido, ignorância seria uma benção!

Sinto que tenho que registrar minha opinião sobre o projeto de terceirização da atividade-fim da Cassi, o "Bem Cassi", piloto lançado em Curitiba (PR) nesta conjuntura de "novo normal" do mundo sob pandemia de Covid-19 e sob a fase capitalista atual, que muitos intelectuais chamam de necrocapitalismo. Eu não tenho informações detalhadas e "técnicas" a respeito do projeto "Bem Cassi"; a informação que tenho é a propaganda do lançamento dele, que vi hoje em um vídeo de 4 minutos e que li no hotsite do projeto. A Cassi vai ampliar a APS/ESF através de duas empresas terceirizadas. De novo, cito Riobaldo Tatarana do Grande Sertão: Veredas: "Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa". (ROSA, 2001, p. 31)

MINHA OPINIÃO RESPEITOSA É BASEADA NO CONHECIMENTO ADQUIRIDO POR EXPERIÊNCIA NA GESTÃO DA CASSI

Durante 4 anos, eu tive a oportunidade de conhecer a autogestão dos funcionários do Banco do Brasil, a Cassi. Estudei sua história de quase oito décadas. Quase não dormi por 4 anos, pois tive que intercalar os percalços da escolha das estratégias que adotamos no planejamento do mandato: estudar as questões técnicas do sistema Cassi, participar dos fóruns deliberativos internos (milhares de súmulas, notas e documentos), estar nas bases formando e informando os participantes. Em síntese, seria:

1. Estudar a Cassi (tudo: história, processos, pontos fracos, pontos fortes, desafios, soluções, essência da associação, modelo assistencial, modelo de custeio, responsabilidades de cada um: os associados, o patrocinador, a própria Cassi e seu corpo de profissionais, os "parceiros" no mercado privado que vendem serviços caríssimos e nem sempre adequados etc). 

2. Manter os direitos dos associados: solidariedade no custeio entre participantes jovens e idosos, sãos e adoecidos, de baixa renda e com remuneração/benefícios maiores, da ativa e aposentados (ex-colaboradores segundo o patrão) e com o patrocinador assumindo a parte dele na proporção estatutária 40/60 no custeio do plano para todos (ativos e aposentados), enfim: solidariedade plena para todos poderem estar no Plano de Associados por toda a vida. 2.1. Manter a democracia na associação: pesos iguais na gestão entre patrocinador BB e associados para tomada de decisões; aumentar a participação dos associados através de envolvimento nos conselhos de usuários, sindicatos, associações, conferências de saúde, parcerias entre unidades do BB nos Estados e Unidades Cassi/CliniCassi (PCMSO, ESF, Convênios, canais de solução locais).

3. Informar e formar a base associada com conceitos básicos sobre a Cassi, o que era a Caixa de Assistência, seu modelo assistencial, os direitos em saúde maiores que os de planos de saúde de mercado, e buscar colocar os intervenientes do sistema Cassi no mesmo objetivo: fortalecer a Cassi perante o mercado privado prestador de serviços e consumidor dos recursos da Caixa. Fizemos mais de 600 matérias a respeito, mais de 40 boletins mensais; 53 conferências de saúde que contaram com milhares de associados, 65 reuniões presenciais com os conselhos de usuários e dezenas de visitas às unidades Cassi e CliniCassi e entidades representativas nos Estados.

DIVERGÊNCIA ENTRE CAPITAL E TRABALHO É NORMAL QUANDO SE TRATA DE DEFINIR AS RECEITAS E AS FORMAS DE RATEIOS DA ASSISTÊNCIA MÉDICA DE UMA COLETIVIDADE

Como representantes dos trabalhadores, tivemos que defender a Cassi e os direitos dos associados diuturnamente, ora porque chegavam propostas "técnicas" (e políticas) que de alguma forma eram desfavoráveis aos associados (principalmente querendo onerar mais os associados e dependentes e/ou reduzir os recursos e custos que o patrocinador tinha obrigações de investir), ora porque as propostas eram prejudiciais à essência do que era a Caixa de Assistência - uma autogestão de trabalhadores, baseada na Atenção Integral à Saúde, cujo modelo assistencial se desenvolvia através de unidades próprias de Atenção Primária em Saúde (APS) e Estratégia de Saúde da Família (ESF), com programas de saúde que se adequavam às estratégias do modelo. Junto a esse modelo de Atenção à Saúde dos associados, tínhamos um convênio exitoso de saúde do trabalhador (PCMSO) que atuava na saúde de 100 mil funcionários do Banco do Brasil. Os dois sistemas convergiam na busca de saúde coletiva da comunidade BB em todo o território nacional.

Para defender a Cassi e seu modelo assistencial, tivemos que desfazer uma quantidade absurda de mal-entendidos, desinformações e ignorâncias (não-saberes), lugares comuns e, às vezes, até mentiras (fake news). O próprio patrocinador, através de alguns de seus representantes à época, contribuía para desinformar os participantes da ativa e aposentados (e suas entidades representativas) quando sugeria que o modelo assistencial da Cassi não era eficiente, que as Unidades Cassi e CliniCassi não atendiam seus objetivos, que a estrutura da Cassi era cara e onerosa etc. Inclusive, o patrocinador atuou fortemente na desconstrução dos direitos estatutários dos associados na gestão da associação, dizendo que a autogestão não tinha mecanismos de decisão adequados. Lógico que aqui estamos falando que a "grita" do banco era quando a Cassi não aprovava as propostas mais favoráveis ao patrão/patrocinador e contrárias aos interesses dos associados.

CONSEGUIMOS UNIR A COMUNIDADE BANCO DO BRASIL NA DEFESA DO MODELO ASSISTENCIAL, DA ESTRUTURA PRÓPRIA DE SAÚDE E DOS PROFISSIONAIS DA CASSI. PROVAMOS QUE A ESF REDUZ O CUSTO DO SISTEMA, MESMO COM POPULAÇÃO MAIS IDOSA

Por 4 anos, mesmo sem recursos financeiros e materiais adequados, fomos grandes incentivadores dos profissionais da Cassi, principalmente das áreas de saúde, para que seguissem atuando naquilo que mais tinham perfil para atuar: desenvolver estratégias para ampliar o modelo de saúde APS/ESF, a promoção de saúde e prevenção de doenças, o acompanhamento dos participantes crônicos, a recuperação dos pacientes adoecidos e agravados etc. Basta ver que ampliamos em mais de 20 mil o número de cadastrados na ESF. A Cassi desenvolveu estudos nunca feitos nos planos de saúde que apresentaram resultados das vantagens do modelo de APS/ESF numa população relativamente estável ao longo do tempo no Plano de Associados e nos crônicos do Cassi Família. Colocamos todos os intervenientes na mesma direção para defender o modelo assistencial da Cassi.

Além disso, também desfizemos os mal-entendidos e as bobagens que se falavam da estrutura de saúde da Cassi, Unidades Cassi, CliniCassi, quadro próprio de profissionais do sistema de Atenção Primária/ESF e PCMSO. O custo administrativo da estrutura Cassi era o menor do setor de saúde brasileiro, em relação às empresas similares de autogestão, das medicinas de grupo e das cooperativas médicas. Uma estrutura absolutamente eficiente ao se comparar o custo-benefício. E isso com a Cassi tendo a maior quantidade de idosos do setor no país! Os recursos do sistema Cassi (mais de 90%) são gastos nos prestadores através das internações, e grandes despesas assistenciais com materiais, exames etc. Os recursos são gastos na estrutura de 2º e 3º graus e de apoio na rede privada.

A estrutura de Atenção Primária da Cassi, com quase 150 equipes de família nas 66 CliniCassi e 27 unidades Cassi, e a estrutura de medicina do trabalho (PCMSO) era e é muito barata e deveria ser ampliada ao longo dos anos para poder reduzir o custo assistencial na compra de serviços de saúde na rede prestadora daquilo que não era possível fazer na estrutura primária da Cassi. A direção e os associados poderiam avaliar diversas formas de verticalização ou parcerias para atendimento das demandas de segundo e terceiro graus e estruturas de apoio à saúde. Isso é normal e faz parte das estratégias de gestão.

A autogestão Cassems dos servidores do Estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, é um caso exitoso de verticalização própria de hospitais pequenos e médios nos interiores do Estado, e também laboratórios e clínicas, inclusive de Atenção Primária. Nós propusemos ampliar a estrutura própria da Cassi de Atenção Primária e ampliar os serviços nas CliniCassi, inclusive criando estruturas para especialidades, para dar sequência no atendimento primária da ESF. O investimento era baixíssimo, se comparado com o custo assistencial dos participantes na rede privada em serviços similares. A estrutura própria de saúde da Cassi é eficiente e de baixo custo administrativo. Isso é fato.

A TERCEIRIZAÇÃO É GRANDE RESPONSÁVEL PELA CONCENTRAÇÃO DE RECURSOS A POUCOS E PELA EXCLUSÃO DO ACESSO A DIREITOS POR PARTE DA CLASSE TRABALHADORA 

Tem uma reflexão do historiador Eric Hobsbawm, contida no livro A era dos extremos, que ilustra bem o que estamos vivendo neste momento da história humana em relação à superexploração do trabalho através de terceirização, quarteirização, uberização, privatizações transformando direitos em serviços etc:

"(...) De qualquer modo, o custo do trabalho humano não pode, por nenhum período de tempo, ser reduzido abaixo do custo necessário para manter seres humanos vivos num nível mínimo aceitável como tal em sua sociedade, ou na verdade em qualquer nível. Os seres humanos não foram eficientemente projetados para um sistema capitalista de produção. Quanto mais alta a tecnologia, mais caro o componente humano de produção comparado com o mecânico." (HOBSBAWM, 2006, p. 404)

Já estamos superando até os cabeças de planilha do sistema capitalista, aqueles que planilham tudo para cortar custos diariamente e aumentar os resultados das empresas (tudo é empresa, e tudo visa eficiência operacional "em tese"). Os próprios trabalhadores são destacados para direcionar os clientes/usuários aos novos serviços tecnológicos que irão cortar os postos de trabalho deles mesmos. 

Um exemplo disso no setor de saúde é a panaceia chamada de "telemedicina", que virou uma espécie de "Emplasto Brás Cubas" para curar todos os males da humanidade. Uma coisa seria a telemedicina auxiliar os processos de saúde durante a crise humanitária da pandemia de Covid-19 ou como sequência de um atendimento já com histórico do paciente; outra coisa é substituir o acolhimento presencial das pessoas por "telemedicina" como começa a surgir no mercado dos serviços de saúde.

Nos bancos, os bancários foram obrigados a empurrar os clientes para terminais de autoatendimento, serviços telefônicos e terceirizadas ao lado do banco. Os trabalhadores com direitos trabalhistas coletivos históricos são demitidos e convidados a serem eles mesmos "empresas" e isso deu nos uberizados do mundo. Os donos de tudo ficam mais bilionários e os trabalhadores mais miseráveis e sem nada. Como diz Hobsbawm, os trabalhos dos seres humanos estão ficando mais caros que qualquer processo por máquina e até os centavos gastos com uberizados têm que ser reduzidos... 

A INTENÇÃO PODE SER BOA, MAS TERCEIRIZAÇÃO DA ATIVIDADE-FIM DA CASSI É UMA OPÇÃO RUIM E TALVEZ SEM VOLTA, CASO SE ABRA MÃO DA ESTRUTURA DE SAÚDE DA CAIXA DE ASSISTÊNCIA

Durante 4 anos de mandato fizemos "loonngos" debates com as representações do patrocinador/patrão contestando e refazendo cálculos de planilhas sobre as Unidades Cassi, as CliniCassi (eram eficientes ou não?), o quadro de profissionais da Cassi (eficientes e preparados ou não?); apresentávamos outro ponto de vista e em muitos casos convencemos os colegas com argumentos consistentes como a eficiência da ESF, como o baixo custo administrativo da Cassi, dentre outros. Discordei de todas as propostas nas quais o Banco poderia deixar de custear os aposentados, ou cobrar mais de quem usasse mais o sistema Cassi, quebras de solidariedade, redução de direitos em saúde etc. 

No entanto, a hegemonia do capital e do mercado é uma praga! É sempre assim! Enquanto se veem com maus olhos qualquer investimento em estrutura própria (ou despesa administrativa), que poderia trazer economias importantes de milhares e milhões de reais em despesa assistencial na compra de serviços caros na rede privada, o foco das discussões acaba sendo repetidamente desviado para o custo administrativo e as supostas vantagens em contratar ou fazer fora o que se poderia fazer na própria autogestão. E daí vem a solução mágica do mercado: TERCEIRIZAÇÃO, com os nomes mais perfumados possíveis.

Por 4 anos, ouvi dos mais diversos setores, dirigentes e profissionais da Cassi que tínhamos razão em quase tudo que discutíamos sobre ampliar a APS/ESF e a estrutura de saúde do modelo assistencial Cassi. A questão era a época errada para aquela discussão: não tínhamos recursos na Caixa por causa dos déficits recorrentes e subfinanciamentos do sistema. E agora? A escolha por terceirizar a atividade-fim do modelo assistencial da Cassi é por falta de recursos? Não me parece.

É isso! Para quem está fora dos debates há mais de dois anos, já fiz o registro respeitoso do que penso sobre esse projeto "Bem Cassi" de terceirização da Cassi naquilo que é a essência da autogestão. A tendência lógica desse "modelo" é vermos depois do piloto as planilhas de "eficiência operacional", depois as comparações com a estrutura interna de saúde da Cassi, depois as dificuldades de investimento próprio, depois a opção em expandir a terceirização e reduzir os "custos" da estrutura da "empresa" etc. 

Eu não culpo as representações dos associados por às vezes apoiarem iniciativas que podem não ser tão ideais para os trabalhadores (TERCEIRIZAÇÃO não é boa para os trabalhadores) porque certas áreas de conhecimento precisariam da assessoria técnica e de dirigentes eleitos com visões de mundo próximas ao mundo do trabalho, dirigentes que dialogassem com os sindicatos, associações e conselhos de usuários e que, se necessário, se colocassem contra os interesses do capital, do patrão. É uma questão de lado, e nesse sentido não tenho visto isso acontecer na Cassi. E repito: respeito os colegas que temos lá, conheço muitos deles. 

Aproveito para reafirmar meu grande apreço pelos trabalhadores da Cassi, que além de serem muito dedicados à autogestão, cumprem suas tarefas com muito profissionalismo.

Esta é minha opinião sobre o "Bem Cassi". Finalizo meu registro com mais uma reflexão do personagem Riobaldo Tatarana, contida no Grande Sertão: Veredas: "pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte" (ROSA, 2001, p. 24)

Abraços a tod@s e desejo uma Cassi fortalecida em seu modelo assistencial, sustentável e com uso racional dos recursos, solidária em seu custeio do Plano de Associados, longeva e que seja para o conjunto dos trabalhadores da ativa e aposentados e seus dependentes.

William


Bibliografia:

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos - O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


25.11.24

Diário e reflexões

 


Ushuaia (ARG), 25 de novembro de 2024. Segunda-feira.


Opinião


O QUE É UM TRABALHO DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA?

Sempre que vejo críticas ao trabalho de representação política me sinto na obrigação de manifestar o que penso a respeito quando entendo que há distorções no caráter da crítica feita.

Por ter sido um dirigente nacional de uma das principais categorias organizadas do país, a categoria bancária, com o único acordo coletivo de âmbito nacional e para diversas empresas, entendo que seja importante não permitir que se desvalorize a Política como solução pacífica das controvérsias.

Vi ontem um questionamento sobre a jornada de trabalho dos parlamentares no contexto do importante debate acerca da redução da jornada de trabalho legal da classe trabalhadora brasileira, hoje de 44 horas semanais, em até seis dias da semana (6x1) durante a jornada semanal. 

Um dos maiores influenciadores das redes sociais, hoje uma pessoa do campo progressista, questionava em sua postagem a atuação dos parlamentares em Brasília somente por 3 dias da semana, justamente os parlamentares que podem ou não reduzir a absurda jornada de 6x1 do povo brasileiro.

O influenciador pedia em seu post um argumento coerente que justificasse a jornada de 3 dias dos parlamentares nas sessões de votação do Congresso Nacional. 

Eu não vou entrar no mérito da atuação efetiva dos parlamentares. Vou expor meu argumento sobre o que entendo ser o trabalho de representação política em sua visão ampla e democrática.

---

VISITA ÀS BASES SOCIAIS É TRABALHO POLÍTICO

A argumentação sobre trabalho de representação política que vou expor aqui é baseada em minha experiência efetiva de mandatos eletivos ao longo de praticamente duas décadas.

Em 2014 passei a exercer um mandato eletivo de diretor de saúde de uma das maiores autogestões em saúde do país. A base social que elegeu nossa chapa com sete pessoas foi uma base nacional, fomos eleitos por associados e associadas de todos os estados brasileiros e Distrito Federal.

Fizeram parte do processo de organização da chapa, construção das propostas e campanha junto aos trabalhadores da ativa e aposentados dezenas de entidades representativas dos eleitores: sindicatos, associações e grupos políticos diversos. Foi uma disputa intensa entre grupos à direita e à esquerda.

Ao iniciar o mandato de 4 anos, sendo a minha função de representação em tempo integral, com reuniões semanais na sede da autogestão em Brasília, me mudei para a cidade por uma questão de logística.

Pela história de representação que tinha, por ser quem eu era no movimento nacional da categoria bancária e pela formação política que tive através dos bancários da CUT, a primeira decisão que tomei foi a de que o nosso mandato não seria burocrático e distante das bases sociais. 

Nosso mandato na direção da autogestão em saúde seria um mandato combativo contra as teses de redução de direitos dos associados, esclarecedor sobre os temas ligados ao sistema de saúde que gerenciávamos e organizador das bases sociais, sobretudo das entidades representativas, para o enfrentamento nas lutas entre patrão e trabalhadores e para que os associados fortalecessem o modelo assistencial ao conhecê-lo melhor.

Já nos primeiros 3 meses de mandato, reunimos todas as equipes sob nossa liderança e realizamos um planejamento estratégico para os 4 anos de trabalho. Ali traçamos os objetivos, as estratégias e táticas e os principais eixos a serem desenvolvidos nos 4 anos de trabalho para defender direitos dos associados e ampliar o modelo assistencial da autogestão.

A mim coube o papel central de fazer o que estivesse ao alcance da representação política daquela direção, pois a metade da direção era indicada pelo patrão e a outra metade era eleita pelos associados no país. Eu seria uma das pontes entre a direção da autogestão e os associados através de um contato permanente com os formadores de opinião: entidades sindicais, associações da ativa e de aposentados e conselhos de usuários. E também os associados em mais de 4 mil locais de trabalho no Brasil.

Assim fizemos obstinadamente por 4 anos. À medida que as dificuldades foram aparecendo, fomos desenvolvendo estratégias para superá-las. O patrão gestor impôs dificuldades mês a mês internamente, tirou recursos para que eu não exercesse meu trabalho estatutário de gestão das unidades de saúde nos Estados, por exemplo. Nós demos um jeito de ir aos Estados com recursos próprios ou das entidades representativas etc.

Durante os 4 anos atuei nos eixos de trabalho sob minha responsabilidade. Lia e estudava pautas gigantes de súmulas e atas, relatórios técnicos e estudos relativos aos sistemas de saúde. Começava a leitura na sexta-feira quando eram liberados e os lia nos finais de semana até definirmos todas as estratégias políticas para as reuniões de diretoria às terças-feiras. Diria que entre sexta e terça, trabalhava umas 40 horas.

Como esse trabalho técnico e político podia ser feito de qualquer lugar, nosso planejamento era perseguido de forma militante. Ao longo do mês, eu sempre estava trabalhando alguns dias nas bases sociais da autogestão: os Estados onde estavam as unidades de atendimento e os associados que representávamos. 

Nos 4 anos, participei de 52 conferências de saúde, sendo palestrante. Me disponibilizei em mais de uma centena de reuniões presenciais em entidades representativas e conselhos de usuários. Se somar esse trabalho ao outro, foram mais de 80 horas semanais de trabalho de representação.

A forma como exercemos o mandato deu resultados positivos. O modelo assistencial da autogestão se consolidou naquele período, virou consenso entre os agentes envolvidos do sistema (stakeholders), viramos referência no setor e fomos premiados na área de saúde. 

Durante nossa gestão, os associados não perderam direito algum, mesmo estando a operadora em uma de suas recorrentes crises de desequilíbrio econômico-financeiro, algo que se repete desde sua criação.

---

A EDUCAÇÃO POLÍTICA DA CLASSE TRABALHADORA DEVE COMBATER MITOS E NARRATIVAS DESPOLITIZANTES

Vou finalizar esta reflexão citando mais um exemplo pessoal para depois falar do que entendo ser mais adequado no trabalho de fortalecimento da representação política do povo, ou seja: democracia ou o povo no poder.

Logo no início de nosso trabalho de direção da autogestão em saúde, um mandato eletivo nacional com uma exigência mista de competência técnica e política ao mesmo tempo, começaram os ataques de nossos adversários políticos. No nosso caso, havia um constante ataque da parte patronal e dos grupos derrotados nas eleições, o principal deles do segmento da direita política.

Uma das formas que definiram para atacar nosso mandato era desqualificar o trabalho de representação política. Diziam os adversários na gestão - o patrão e a direita - que a operadora ia mal porque tinha representantes dos trabalhadores, que a política só atrapalha as empresas blá blá blá. Esse tipo de narrativa é muito comum por parte de burocratas e liberais. 

Detalhe: as áreas de administração e de finanças que geravam consecutivos déficits e desperdícios na operadora são todas geridas pelo patrão naquela autogestão. Sem contar que parte dos déficits é estrutural, tem relação com o mercado de saúde, sempre com dificuldades e déficits. O patrão queria que só os trabalhadores pagassem a conta.

Logo nos primeiros meses de mandato, duas ex-gestoras da operadora, derrotadas na eleição, publicaram texto nas redes sociais à época, inventando mentiras a meu respeito, sendo a acusação principal a pecha de que o diretor de saúde não trabalhava, eu seria uma espécie de "vagabundo", pois diziam que eu só trabalhava nas terças-feiras, dia de reunião da diretoria executiva. Percebem como atuam desqualificando o trabalho político de representação da classe trabalhadora?

O fato concreto é que ouso dizer que poucas vezes na história da autogestão uma pessoa leu e estudou tanto a operadora, sua história, sua operação interna e no mercado, seu público usuário; e defendeu os direitos de seus associados como fizemos. No final do mandato, a única forma que encontraram de nos tirar tempo de embate político e nos colocar sob forte ataque foi um processo de lawfare (um processo administrativo baseado em cartinha anônima, arquivado depois por falta de materialidade).

Então, é interessante que politizemos as questões relativas ao povo e ao mundo do trabalho. É papel das lideranças do campo democrático e também das áreas de formação política dos movimentos populares ampliar os conceitos de trabalho e representação política. Uma liderança exercendo um mandato não pode se tornar uma burocrata e se afastar das bases sociais. Qualquer parlamentar ou representante deverá conjugar sua jornada de trabalho na área onde atua como eleito e nas bases de onde saiu o seu mandato.

Para citar algum exemplo de pessoas que conjugam atuações técnicas e políticas tanto nos ambientes para onde foram eleitos como nas bases de onde vieram, eu aponto os mandatos da jovem vereadora Luna Zarattini (PT-SP), do deputado estadual Marcolino (PT-SP), do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) e do senador Paulo Paim (PT-RS). Esses representantes congregam um pouco do que expus em minhas reflexões acima.

Eles trabalham de segunda a segunda, de manhã, de tarde, de noite, nos finais de semana, têm competências técnicas e políticas, ao mesmo tempo que fazem duríssimos embates nos parlamentos onde atuam, dão um jeito de prestarem contas e pisar o chão de onde vieram os votos e a esperança das pessoas que confiam neles. Estão sempre sob fogo cerrado e as baterias inimigas dos adversários deles e do povo que eles representam têm munição pesada para depor contra a imagem e o trabalho deles.

É isso. Espero ter contribuído sobre essa questão do que seja um trabalho de representação política e as diversas narrativas criadas em torno dessa ferramenta central da democracia e da participação social nos destinos de todos nós.

William Mendes

Ex-dirigente nacional dos bancários


3.6.24

Cassi, nossa Caixa de Assistência (3)




03/06/24. Segunda-feira

Impressão


É estratégico estimular demanda em rede prestadora?

Enquanto caminhava pela orla da Praia Grande neste feriado, pensava nas coisas da vida. Vendo o cenário e as pessoas na paisagem, me veio à mente a questão da saúde e da não saúde, inclusive da saúde mental, e a questão do saber e do não saber.

Sempre que começo um texto sobre a Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil procuro situar leitoras e leitores sobre o que estou tratando no texto. A Cassi é uma autogestão gerida de forma paritária entre o patrocinador BB (o governo) e os associados (trabalhadores). É uma operadora de saúde segundo a legislação. Compra serviços caríssimos no mercado privado de hospitais, clínicas, cooperativas médicas, medicamentos e materiais como próteses, órteses etc. Para a autogestão se manter existindo é fundamental usar da melhor forma possível os recursos no cuidado da saúde de seus participantes.

Feita a explicação inicial, registro que fiquei muito incomodado ao ver logo cedo, no sábado, uma matéria nas redes sociais sobre nossa autogestão em saúde anunciando como uma grande conquista a novidade de que agora qualquer um dos 588 mil participantes do sistema pode se cadastrar numa empresa capitalista de consultas por telemedicina com psicólogos e psiquiatras... sem recomendação e orientação adequada por parte das equipes de saúde ESF (da Estratégia de Saúde da Família) da própria Caixa de Assistência.

Aí, um leigo em gestão de saúde, em gestão de saúde do modelo assistencial que nós preconizávamos na Cassi, poderia me dizer assim: - Ué, não é uma boa notícia? Pelo que a operadora anunciou, é uma ótima notícia! Agora qualquer usuário dos planos do sistema Cassi pode fazer quantas consultas quiser com psicólogo e psiquiatra. É só criar uma conta lá na empresa conveniada e pronto. Que mal há nisso?

Eu fico admirado, mas não surpreso, na forma como as coisas se desenvolvem no mundo atual. E fico me cobrando por que eu insisto em perder meu tempo elaborando comentários sobre coisas relativas à nossa Caixa de Assistência. No fundo eu sei por que me cobro isso: porque alguém que tem conhecimento sobre algo não pode se isentar de dizer o que sabe sobre aquilo. Eu conheço a Cassi e o modelo assistencial, conheço o mercado onde ela opera e os problemas da autogestão. Não posso me calar!

A notícia sobre um convênio com uma empresa do mercado para que os participantes do sistema Cassi possam fazer consultas à vontade com seus sócios ou profissionais é uma notícia no mínimo preocupante para a sustentabilidade da operadora, para os próprios assistidos dos planos e para o modelo que a Cassi deveria perseguir caso queira sobreviver por bastante tempo. 

Sério: vendo a forma como a notícia foi dada, qualquer gestor de saúde que olha os custos do sistema saberia o que estou dizendo. É uma temeridade a notícia! É um incentivo ao gasto aberto sem resolutividade aparente e com risco de uma conta impagável para a operadora.

Mas vai entender! Isso não deveria ser problema meu, nem preocupação minha. Sei de diversas pessoas dentro da gestão da operadora que deveriam saber que nosso modelo não era para ter foco no estímulo aos participantes para fazerem suas "demandas" na rede prestadora assim como está na propaganda, ao sabor do mercado. 

Era para ser o inverso. Era para um participante da Cassi só passar por uma consulta ou exame na rede privada capitalista consumidora dos recursos do sistema Cassi caso um médico ou alguém da própria equipe de família que acompanha e monitora aquele participante sugerisse a marcação da consulta ou exame. Repito: era para toda a gestão da Cassi ter isso em mente! O que mudou tanto?

Então, por que eu estou preocupado com essa notícia esquisita, chamando os 588 mil participantes do sistema a saírem se cadastrando na tal empresa conveniada e fazendo consultas quantas vezes quiserem? A empresa vai lucrar mais com o estímulo da própria operadora que vai pagar a conta para seus usuários irem às comprar no mercado de venda de serviços de saúde. Francamente!

O mundo humano está muito esquisito. Vai saber quantas daquelas pessoas que vi por uma hora na orla da Praia Grande não são participantes dos planos de saúde da Cassi e não poderiam começar já a se cadastrarem na tal empresa e marcarem consultas com psicólogos e psiquiatras à vontade... (É a lógica do Emplasto Brás Cubas que expliquei aos usuários da Cassi quando era gestor eleito da operadora)

A impressão que tenho ao ler essa notícia é que o modelo que a Caixa de Assistência está adotando desde os governos Temer e Bolsonaro (e seus indicados) e as gestões eleitas do Grupo Mais é o modelo aberto, curativo, comprador e pagador de serviços no mercado privado da saúde, impagável, que não tem nada a ver com um modelo preventivo, gestor e orientador do usa da rede de forma racional e sustentável. 

Um estímulo ao uso indiscriminado de serviços contratados na rede, sem acompanhamento da gestão da Cassi não é algo razoável. Isso não é nem Estratégia de Saúde da Família e nem Atenção Primária, como repetem na forma de um mantra. Atenção Primária deveria ter consequência longitudinal no vínculo ou fidelização na relação equipes de saúde e participantes.

É a opinião de alguém que geriu a Cassi.

William Mendes


Post Scriptum: o texto anterior desta série pode ser lido aqui.


29.5.24

Cassi, nossa Caixa de Assistência (2)



29/05/24. Quarta-feira

Opinião


Nossa Caixa de Assistência (2)

A comunidade de trabalhadores da ativa e aposentados do Banco do Brasil criou oitenta anos atrás uma Caixa de Assistência que se mostrou fundamental na vida daquela parcela da população brasileira. Nossos colegas do banco tiveram uma visão de vanguarda e ao longo do tempo foram se especializando em solidariedade, cooperativismo e participação na vida social do país.

Quando olhamos hoje os dados demográficos da população assistida pela nossa Caixa de Assistência e pela nossa Caixa de Previdência vemos o quanto fomos favorecidos pela escolha correta da solidariedade e cooperativismo. Vivemos mais que nossas irmãs e irmãos brasileiros, que por sinal têm algum acesso a atendimentos de saúde por causa do Sistema Único de Saúde (SUS). Não fosse isso, as coisas seriam mais difíceis para todos.

São assistidas pela autogestão 184.461 pessoas com mais de 59 anos de idade, ou seja, 31,34% dos 588.541 participantes dos planos da Cassi. Tínhamos em dezembro de 2023, 163 centenárias e centenários, a maioria mulheres, lógico, 142. É importante lembrar a todos vocês que ao termos a Cassi funcionando e cuidando dessa população idosa, estamos aliviando as demandas no sistema público, o SUS, já sobrecarregado e subfinanciado.

Uma coisa eu aprendi como membro da comunidade de pessoas do maior banco público do país: a solidariedade e o associativismo são fundamentais para todos nós. Os bancários e bancárias foram vanguarda na criação de associações e sindicatos de trabalhadores brasileiros. Então, viva o movimento sindical e as entidades representativas dos trabalhadores!

Os estudos que realizamos na população Cassi ao longo de nosso trabalho de gestão do modelo assistencial Estratégia de Saúde da Família (ESF) demonstraram o quanto os participantes vinculados ao modelo foram beneficiados por serem cuidados por nossas equipes de família das CliniCassi e pelos programas aos quais estavam inseridos. Com isso, os recursos da Cassi foram melhor utilizados pelos segmentos cuidados por nós.

Seria uma excelente estratégia de sustentabilidade para a nossa Caixa de Assistência se continuássemos perseguindo o objetivo de cadastrar e acompanhar a saúde do conjunto dos participantes do sistema Cassi na ESF, o modelo de APS que havíamos definido e provado a eficiência dele.

---

Sobre os planos de saúde da Cassi

Estava vendo os números do primeiro bimestre de 2024 dos planos de saúde da Cassi e me chamou a atenção o resultado do Cassi Vida do período (Visão Cassi).

As contraprestações efetivas foram de 10.022 mil e os eventos líquidos indenizáveis de 10.925 mil, sendo o resultado operacional deficitário em quase um milhão de reais (-903 mil) e o resultado líquido -2.839 mil.

O plano é muito novo, foi lançado há menos de dois anos. Ter receitas brutas de 10 milhões e resultado deficitário de quase 3 milhões com tão pouco tempo é algo preocupante ao analisarmos o movimento de um plano de saúde ao longo do tempo. Se está assim no começo, como será quando estiver maduro?

Quem acompanha a minha opinião sobre esses diversos planos "de mercado" que a nossa Caixa de Assistência vem lançando sabe o quanto sou contrário a isso. 

Aliás, como disse no texto anterior, planos como esses Cassi Vida e Cassi Essencial só fazem vampirizar (tirar de um e ir para outro) o plano melhor para nossos familiares, o Cassi Família II, que tem melhores coberturas, não tem franquia e coparticipação.

Insisto nisso como alguém que conhece a Cassi. O melhor seria fortalecer o Cassi Família e para isso poderíamos fazer campanhas para adesão com um adendo específico no qual os usuários poderiam obter descontos que reduziriam as mensalidades para aderentes ao modelo de Atenção Primária e Estratégia de Saúde da Família (ESF).

É minha opinião.

William Mendes


Post Scriptum: o texto anterior desta série pode ser lido aqui.


17.5.24

Cassi, nossa Caixa de Assistência (1)



17/05/24. Sexta-feira.

Opinião


Nossa Caixa de Assistência

A Cassi é a Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, uma autogestão em saúde gerida de forma compartilhada entre os seus associados e o patrocinador BB. A associação foi criada em 1944 e neste ano completou oitenta anos de existência. 

Atualmente, a Cassi é uma operadora de saúde na modalidade de autogestão, atua no setor de saúde suplementar brasileiro, tem estatuto próprio, e se submete à legislação do país. O setor onde atua é fiscalizado em parte pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS. Digo em parte porque a Cassi compra serviços de saúde em um mercado que não é controlado pela ANS, o que é ruim para as autogestões em saúde.

Esse cenário onde a Cassi opera não foi sempre assim: nossa Caixa de Assistência foi criada por trabalhadores do BB muito antes de boa parte das instituições do Estado nacional. Pertencemos a uma comunidade de vanguarda no mundo do trabalho, cuja cooperação sempre esteve presente em nosso cotidiano. Associativismo e solidariedade fazem parte da história dos funcionários do maior banco público do país.

Sou associado de nossa Caixa de Assistência há mais de trinta anos e tive a oportunidade e a missão de ter sido um dos administradores eleitos pelos associados e associadas na história de nossa autogestão. Foi um período de muito aprendizado e de muita luta por direitos em saúde porque a realidade dos direitos dos associados da Cassi vem sendo construída desde janeiro de 1944. Contei parte da história de nossa associação ao longo do mandato que exerci em nome dos associados.

---

Relatório 2023 (dados retirados do site da Cassi)

Hoje, saiu o resultado da consulta ao corpo social em relação ao Relatório 2023. Participaram do processo de prestação de contas 55.200 participantes, de um total de 160.239 associados, pouco mais de 34% do total do público com direito a voto em nossa Caixa de Assistência. A maioria aprovou o relatório: 31.894 pessoas. Achei preocupante a quantidade de pessoas que não aprovaram o relatório: 23.306 pessoas ou 42,2% dos manifestantes (total de votos contrários 4.606, brancos 8.436 e nulos 10.264). 

Desde minha saída da gestão de nossa Caixa de Assistência, acompanho de longe os avanços e retrocessos em relação aos direitos dos associados e em relação à própria operadora do ponto de vista das formalidades do setor onde a Cassi opera. Avalio que os associados vivenciaram momentos difíceis e de retrocessos em relação aos nossos direitos durante os governos de Temer e Bolsonaro (2016-2022). É importante lembrarmos que o governo federal é acionista majoritário do BB e indica a metade da gestão da Cassi. 

O Relatório 2023 expressa a realidade da operadora e o que foi feito em nossa Caixa de Assistência no ano passado, incluindo, é lógico, o que foi feito nos últimos anos (consequências das gestões anteriores). O Relatório foi aprovado pelos conselhos fiscal e deliberativo e por auditoria independente. A direção fez apresentações do Relatório para os associados e suas representações.

Eu ainda não terminei a leitura completa do Relatório. Segui o voto de nossas representações eleitas e de nossas entidades representativas do funcionalismo. 

Algumas questões me chamaram a atenção. Lógico que a minha leitura do Relatório não é uma leitura de leigo, é uma leitura de quem geriu a nossa Caixa de Assistência por muitos anos e de quem tem opinião em relação às decisões tomadas pela direção da Cassi.

---

Duas observações iniciais sobre o Relatório 2023

No geral, percebi um esforço do nosso governo Lula (sou eleitor de Lula) e da composição da direção da Cassi em 2023 em resolver o problema do déficit preocupante que se realizaria no exercício, de aproximadamente 448 milhões de reais (p. 7), caso não avançasse o acerto das dívidas do patrocinador relativas às reclamações trabalhistas. Lógico que a preocupação segue em relação aos valores recorrentes de receitas operacionais e despesas assistenciais.

Vejo com preocupação a questão dos planos de saúde para familiares dos associados. Desde que era gestor, tenho senões a essa estratégia de criação de um monte de planos hipoteticamente mais baratos (direitos menores para nossos familiares). O que parece ser um avanço no Cassi Essencial e Cassi Vida, ampliarem a carteira em 8.500 e 6.802 planos vendidos (+15.302) nada mais é, na minha opinião, que a saída de 15.790 participantes do Cassi Família I e II. Não é avanço algum no "público-alvo" como costumam dizer. Só estamos enfraquecendo o principal plano para familiares. 

Entendo que poderíamos fortalecer o CF II, que é melhor, com descontos por adesão espontânea ao modelo de Atenção Primária e Estratégia de Saúde da Família (ESF). Seria melhor para todos: Cassi e o modelo assistencial, familiares e patrocinador. Os planos familiares não foram pensados para oferecer direitos menores para nossos entes queridos. Isso é um equívoco! Imaginem se tem cabimento um colega do banco com o filho ou neto com um plano de saúde com coberturas menores e redes piores...

Enfim, desejamos perenidade para nossa Caixa de Assistência e sustentabilidade com manutenção e ampliação de direitos em saúde para o conjunto das trabalhadoras e trabalhadores da ativa e aposentados(as) e demais assistidos(as) da comunidade Banco do Brasil.

Parabéns à direção pelo trabalho que vem realizando e parabéns a todos nós associados por essa conquista extraordinária que é a Caixa de Assistência.

---

Nossa solidariedade ao povo do RS

Por fim, presto aqui a nossa solidariedade ao povo irmão do Rio Grande do Sul. O Estado sempre foi uma base referência no que diz respeito à Cassi, nosso modelo assistencial de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e sempre contamos com uma participação muito ativa do voluntariado nos conselhos de usuários. 

Aprendi muito com os colegas e amigos do RS. Temos uma população de mais de 31.500 participantes da Cassi no Estado. Esperamos que nossas irmãs e irmãos se recuperem e retomem a vida o mais breve possível. Contem conosco da comunidade Banco do Brasil e com todo o povo brasileiro!

William Mendes


Post Scriptum: o texto seguinte desta série pode ser lido aqui.


10.3.24

Diário e reflexões: autogestões

 


Autogestão: uma modalidade das operadoras da saúde suplementar que por suas características pode ousar desenvolver modelos de Atenção Primária e Medicina de Família

Osasco, 10 de março de 2024. Domingo.


"O óbvio é aquilo que nunca é visto até que
alguém o manifeste com simplicidade
" (Kahlil Gibran)


Para fazer um bate-papo com gestores e operadores de uma autogestão em saúde, decidi visitar minhas memórias sobre os conhecimentos e experiências que tive o privilégio de adquirir ao ter sido eleito diretor de saúde de uma das maiores operadoras do Brasil na modalidade autogestão: a Cassi dos trabalhadores do maior banco público do país.

Fiquei pensando nos últimos dias quais temáticas poderia abordar para contribuir com a direção e operadores de uma autogestão em saúde. Fui buscar na memória quais informações mais me surpreenderam e foram novidade quando cheguei à Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil para atuar na diretoria justamente responsável pelo modelo assistencial daquela autogestão.

Uma característica pessoal que deve ter contribuído para minha percepção relativamente rápida do que se tratava a autogestão na qual fazia parte da direção é gostar de ler e estudar. Isso facilitou minha passagem de quatro anos pela direção da Cassi. Outro fator essencial foi a qualidade das equipes que trabalhavam conosco na gestão, pois sem os ensinamentos dos profissionais da Cassi e sem os debates francos e fraternos não teria aprendido o que sei sobre gestão de saúde.

As autogestões fazem parte das modalidades de operadoras da saúde suplementar reguladas e fiscalizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Elas têm algumas características diferentes das outras modalidades que operam no sistema de saúde. Não são planos de saúde comerciais como os demais que operam no mercado, como as medicinas de grupo, as seguradoras de saúde e as cooperativas médicas. Para o bem e para o mal, os pontos positivos e os negativos das autogestões precisam ser conhecidos tanto por seus gestores quanto pelos participantes da modalidade.

Como gestor da maior autogestão do país, rapidamente entendi o que deveria fazer em quatro anos de gestão e após um planejamento estratégico feito em nossa diretoria, persegui disciplinadamente os eixos dos objetivos traçados por nossas equipes para fortalecer a operadora em si, o modelo assistencial definido após a reforma estatutária (1996) que deu as características atuais da Cassi e para defender os direitos em saúde e de participação na gestão dos associados da Caixa de Assistência.


A SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL

Peguei para ler um livro que estou achando bastante interessante, um livro com um excelente conteúdo técnico sobre saúde suplementar. Já li um terço do material e fico contente por ter percebido que meus conhecimentos não se perderam sobre o tema. Se trata do livro "Fundamentos, Regulação e Desafios da Saúde Suplementar no Brasil", de Sandro leal Alves, lançado em 2015. O autor escreve muito bem, o que facilita bastante a leitura.

Refletindo a respeito do que poderia abordar com operadores e gestores de uma autogestão em saúde e relembrando o que compreendi ao estudar o modelo assistencial da Cassi e o sistema de saúde no qual ela operava - o mercado privado de venda de serviços de saúde - entendo que os objetivos que perseguimos durante quatro anos de mandato são boas referências para um bate-papo, uma troca de informações.

1. As autogestões precisam ser conhecidas por seu próprio público, pelos chamados "stakeholders", pelas partes envolvidas e interessadas na operação da autogestão. Infelizmente, a tendência é gerirem a autogestão como se ela fosse uma empresa do mercado de saúde suplementar como as medicinas de grupo ou seguradoras de saúde, por exemplo. Só de não atuar com a informação correta na apresentação da autogestão para os seus operadores e participantes, já teremos pela frente uma enormidade de problemas que resultarão no consumo inadequado dos recursos da operadora. E insatisfação, muita insatisfação e até judicialização.

2. Feita a lição de casa básica, compreender que a autogestão é uma autogestão e que isso dá a ela características bem distintas das demais operadoras de saúde que operam no mercado de venda de serviços e produtos de saúde, o passo seguinte é desenvolver a melhor forma de usar os recursos para cuidar da saúde de seus participantes ao longo do tempo. 

Uma operadora do sistema de saúde suplementar, dependendo mais ou menos de alguma estrutura própria de saúde que tenha, atua no sistema (mercado) usando seus recursos (receitas) para comprar procedimentos e produtos caríssimos num mercado que visa lucro com a doença das pessoas. 

Esse fato precisa ser tratado com a realidade devida, se os participantes das operadoras de saúde tiverem boa saúde os capitalistas que vendem serviços e produtos terão leitos vazios e lucros menores. Um modelo preventivo na autogestão vai diminuir o lucro do mercado e os hospitais, médicos, clínicas e vendedores de OPMEs não vão ficar contentes com isso. Entendem? Os recursos da autogestão serão utilizados de forma mais adequada também.

É fundamental, por isso, que os stakeholders da autogestão compreendam que ela tem menos liberdade para escolher sua carteira de "clientes" (público é definido por lei e estatutos), tem dificuldade de repassar para as mensalidades toda a inflação médica para reequilibrar anualmente o balanço, e o perfil de seus participantes em geral contém faixas etárias maiores que as operadoras do mercado que visam lucro.

3. Tendo claro que uma autogestão não é um plano de saúde comercial (que visa lucro), que ela tem algumas limitações para compor sua carteira de usuários, reajustar mensalidades e comprar serviços no mercado de saúde através de contratos com redes credenciadas, a direção e os operadores devem desenvolver objetivos realistas com a natureza da autogestão e definir estratégias para isso. 

4. Uma das principais características das autogestões para atuar na prevenção de doenças e na qualidade da saúde da população assistida é o longo prazo de permanência dos participantes no sistema. Em geral, são grupos de trabalhadores que passarão décadas dentro da modalidade, tanto os titulares do plano quanto seus dependentes e familiares permitidos pela legislação. Aí entram os modelos de saúde que monitoram e atuam com cada indivíduo assistido ao longo de muitos anos, permitindo com um bom gerenciamento do modelo, orientar o melhor uso das redes credenciadas, protegendo tanto os participantes quanto os recursos da autogestão.

--------------------

TER UM MODELO ASSISTENCIAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE

Minha sugestão é a autogestão criar e fortalecer um modelo de Atenção Primária que conheça seu público e o acompanhe ao longo da vida e trabalhar fortemente a comunicação com educação em saúde e criação de um espírito de pertencimento à autogestão como um patrimônio daquele grupamento. Os planos de mercado têm dificuldade em fazer isso, porque seus públicos entram e saem. As autogestões tendem a ter seus públicos por décadas!

--------------------

NÃO HÁ RECURSOS QUE PAGUEM O QUE O MERCADO DA SAÚDE TEM A OFERECER

Estas reflexões são linhas gerais que considero importantes para serem avaliadas em planejamentos estratégicos de uma autogestão em saúde.

As contradições nesta área do saber e da economia são enormes. De um lado, temos os setores que operam na geração das despesas assistenciais, vendendo serviços, materiais, medicamentos, diagnoses e culturas estéticas e do outro temos pessoas e planos de saúde com recursos sempre limitados sendo incentivados ou forçados (até pela justiça) a comprarem aquelas ofertas caras de procedimentos e produtos, ofertas ora necessárias ora desnecessárias. A conta não fecha!

Quando gestor da maior operadora de autogestão do país, criamos uma metodologia de aferição dos resultados em saúde e no uso dos recursos de uma população assistida por um modelo assistencial de Estratégia de Saúde da Família (ESF) no qual os participantes que estavam fidelizados há três anos ou mais tinham resultados no uso dos recursos do plano muito melhores que seus correspondentes das mais diversas faixas etárias que não eram cuidados pela ESF. Os números eram impressionantes, mesmo nas curvas A de despesas do plano.

Durante quatro anos, mesmo enquanto a operadora redefinia sua estrutura de custeio, pois enfrentava à época mais uma série de déficits que acompanham a Cassi há oito décadas, nós apresentamos aos stakeholders o que era a autogestão, seu modelo assistencial ESF/CliniCassi e programas de saúde, aumentamos os cadastrados na ESF em nível nacional, empoderamos as lideranças locais no modelo assistencial e os estudos que fizemos deram coesão na defesa do modelo por ser mais sustentável no tempo.

Enfim, para esse artigo já dei algumas ideias sobre caminhos a serem seguidos por autogestões em saúde pensando em como lidar com suas populações assistidas.

William Mendes


9.2.24

História dos bancários: um olhar (XIV)


CartaCapital nº 1294.

A questão da saúde dos trabalhadores e as autogestões em saúde

Memórias e contribuições para reflexão (II)


Uma reportagem da revista CartaCapital deste ano, edição 1294 de 24 de janeiro, ilustra bem os pontos que quero tratar nesta série de textos sobre a questão da saúde dos trabalhadores e as autogestões em saúde.

O Dr. Vecina diz:

"Não tem nenhum problema nos planos de saúde. O modelo é que está errado. Os planos têm um projeto assistencial que nunca teve a ver com assistência à saúde. Vendem assistência para o comprador, que quer ser atendido pelo prestador, que são os médicos, os hospitais, as clínicas. Isso não é saúde, é curar doenças".

O Dr. Gonçalo Vecina é médico sanitarista e fundador da Anvisa. Já tive o privilégio de dividir uma mesa de webinário com ele sobre saúde dos trabalhadores.

Nesta série de textos que vou fazer, pretendo compartilhar com as leitoras e leitores do blog um pouco da experiência que adquiri ao ser gestor eleito de uma autogestão em saúde dos trabalhadores, a Cassi dos funcionários do Banco do Brasil. Fui diretor eleito de saúde da Caixa de Assistência.

A categoria bancária é uma das categorias profissionais mais organizadas do país, com mais de um século de lutas e conquistas. Não à toa, temos a única convenção coletiva nacional, um contrato de trabalho que vale para diversas empresas e para todas as regiões do país, abrangendo mais de 350 mil trabalhadoras e trabalhadores, de empresas públicas e privadas.

Uma das conquistas dessa categoria profissional é ter algum tipo de previsão de acesso a planos de saúde dentro do rol de direitos nas convenções e acordos coletivos, ou mesmo sem constar dos contratos coletivos. Alguns segmentos têm, inclusive, acesso a modelos de autogestão em saúde, caso, por exemplo, dos dois maiores bancos públicos do país, o BB e a Caixa Federal.

---

ALGUNS DADOS DO SETOR DE SAÚDE, A PARTIR DA MATÉRIA DA REVISTA CARTACAPITAL

Ao ler a matéria "Onde está o gargalo?" que apresenta a seguinte questão "O número de segurados cresce e as mensalidades disparam. Ainda assim, os planos acumulam prejuízos bilionários", matéria de Fabíola Mendonça, tirei alguns dados interessantes para ilustrar o que penso sobre a problemática na saúde suplementar.

Dados do setor:

- 20 bilhões de déficit em 3 anos;

- 1,9% de crescimento no número de segurados nos 10 primeiros meses de 2023;

- 51 milhões de participantes, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar);

- 3,1 bilhões de lucro no 3º T/23;

- 6,3 bilhões de prejuízo de jan-set/23;

- 8,37 bilhões de resultado financeiro no setor (que compensa os prejuízos operacionais);

- 88,2% de sinistralidade (índice insustentável a longo prazo);

- 331 operadoras com prejuízo (quase metade do setor);

- Em 10 anos, houve redução de 920 para 680 empresas no setor;

- 711,4 bilhões de reais foram as despesas de saúde no Brasil em 2019, sendo 427,8 bi por parte das famílias e instituições sem fins lucrativos (5,8% do PIB) e 283,6 bi de desembolso do governo (4% do PIB);

- 68 das 680 operadoras não têm faturamento anual que possa pagar 1 (uma) dose de Zolgensma, cuja dose custa 7,6 milhões de reais. O medicamento é indicado para bebês de até 6 meses de idade diagnosticados com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I. A ANS incluiu a medicação no Rol obrigatório desde fev/23;

- Terapias e tratamentos passaram a pesar mais nos custos dos planos depois da pandemia de Covid-19. Antes eram 2% dos custos totais, agora são 9%. Terapias de fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e fisioterapia. Essas terapias constam do Rol obrigatório da ANS para tratamento de Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD) e Transtorno de Espectro Autista (TEA);

- A judicialização é responsável por 40% do déficit do setor nos últimos anos. São 973 queixas por dia;

- Reajustes são impagáveis: de 2018 a 2023, os planos individuais subiram 35% e os coletivos subiram 80%. Em geral, a classe trabalhadora está nos planos coletivos, atrelados a um CNPJ, por estarem empregados em uma empresa com possibilidade de adesão a um plano de saúde, que sobe a mensalidade sem controle da ANS, sobe conforme o comportamento dos custos do próprio plano;

- Idade e pacto intergeracional: o Brasil em 2022 atingiu 15,8% de pessoas com 60 anos ou mais. Na saúde suplementar o índice é de 14,3%. Quanto menor o número de jovens contribuindo, pior para o custeio intergeracional. Em 10 anos a faixa de 20-39 anos caiu 7,6% e a faixa de 60 anos adiante cresceu 32,6%;

Comentário do blog:

Acrescento a esses dados que nas autogestões em saúde os perfis das faixas etárias são bem diferentes das carteiras do mercado privado de planos de saúde que visam lucro. As autogestões concentram grandes quantidades de pessoas nas faixas etárias acima de 60 anos porque elas funcionam de forma diferente do mercado, elas não escolhem os participantes das carteiras.

---

E AS AUTOGESTÕES EM SAÚDE?

Uma outra observação importante do Dr. Vecina nos ajuda a entender os problemas apontados na matéria sobre custos na saúde suplementar: o modelo de negócio.

A reportagem nos diz que o sanitarista explica que as operadoras se portam como meros intermediários entre os usuários do sistema e os prestadores dos serviços, sem nenhuma preocupação com a saúde básica e sem querer abrir mão de parte dos lucros.

Aí está um problema existencial, eu diria, central na vida das operadoras de planos, principalmente nas autogestões em saúde, que comento a partir de agora, tendo como base minha experiência na Cassi, mas que pode ser referência para várias outras autogestões em saúde.

RECEITAS LIMITADAS, DESPESAS ABERTAS - As autogestões têm características especiais quando observamos as operadoras de planos de saúde do mercado - medicinas de grupo, seguradoras e cooperativas médicas -, todas têm problemas parecidos nos usos dos recursos dos planos ao comprar serviços no mercado capitalista de procedimentos de saúde, mas têm diferenças nas possibilidades de receitas e públicos possíveis.

Autogestões não visam lucro, não podem escolher o público participante como os planos de mercado fazem, não escolhem as áreas geográficas de disponibilização do plano e são obrigadas a atenderem demandas em áreas sem prestadores disponíveis, e as receitas não podem ser equalizadas com as despesas assistenciais com a mesma desenvoltura dos planos de mercado. Probleminhas básicos esses, vocês não acham?

ATENÇÃO PRIMÁRIA E CONTROLE DE RISCOS É A MELHOR PERSPECTIVA DE LONGO PRAZO - Pelas características que citei acima, é muito importante para uma autogestão em saúde desenvolver um modelo assistencial cujos objetivos sejam a saúde integral de seus participantes e não a cura de sua população adoecida ao longo do tempo. 

O ponto positivo das autogestões é a possibilidade de manterem seus participantes no longo prazo, coisa difícil no mercado. Como os assistidos no sistema de saúde de uma autogestão podem ficar décadas no plano, a prevenção e a promoção de saúde trazem grande benefício tanto para a saúde das pessoas quanto no uso do recurso do plano na hora de comprar serviços na rede credenciada, que visa lucro com doenças.

Como as autogestões em saúde não escolhem seus públicos participantes como ocorre no mercado privado que visa lucro, elas têm em seus grupos de assistidos faixas etárias com idades maiores que as do mercado. E também podem ter segmentos com doenças pré-existentes, algo que não ocorre no mercado privado - ou ocorre menos. Como fazer para equilibrar carteiras de participantes assim sendo a inflação médica quatro ou cinco vezes mais que a inflação oficial anualmente?

A Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, a Cassi, completou 80 anos de existência em 2024. Durante as primeiras cinco décadas, o modelo era muito próximo daquilo que o Dr. Vecina explica na reportagem da revista: uma operadora que intermediava compras de serviços de saúde entre usuários e vendedores de serviços no mercado. 

A conta não fecha, é algo mais que claro! Não há receita em plano de saúde que aguente pagar todas as ofertas que a indústria da saúde tem disponível para eventuais clientes (pacientes) que possam pagar, ou os planos de saúde dos clientes, ou o governo/SUS que a justiça mande pagar. A conta não fecha!

A Cassi, os trabalhadores e o patrocinador Banco do Brasil chegaram a um acordo em 1995/96 e fizeram uma reforma estatutária cujo objetivo da Caixa de Assistência passava a ser outro, criar uma autogestão com CNPJ próprio, estrutura e modelo de saúde próprios para atuar na Atenção Integral à Saúde de seu público-alvo. 

Como a população assistida era muito estável e ficaria décadas dentro do sistema, seria possível atuar através de um modelo de Atenção Primária, e foi escolhido o modelo de Estratégia de Saúde da Família (ESF), para gerir a saúde de centenas de milhares de pessoas num país continental, estando o público assistido no sistema tanto na fase laboral quanto na fase de aposentadoria.

Quando fui gestor do sistema de saúde Cassi, desenvolvemos metodologias de estudos que comprovaram que o modelo ESF/CliniCassi era altamente eficaz em seus objetivos. O público monitorado pelo modelo que era fidelizado há mais de 3 anos tinha resultados extraordinários em diversas dimensões avaliadas, inclusive na questão das despesas assistenciais, até mesmo de faixas etárias maiores. Quase todas as faixas tinham curvas de despesas melhores em participantes vinculados ao modelo ESF em relação aos participantes soltos no sistema e na rede credenciada, sem monitoramento pelas equipes de família da Cassi.

Concluo assim essa postagem comentando a partir de dados atuais do setor de saúde a importância para os planos de saúde e a saúde suplementar, principalmente para as autogestões em saúde, em estabelecerem objetivos de atuarem na saúde efetiva de seus participantes ao longo do tempo e não só como intermediadores de compra e venda de serviços impagáveis da indústria de consultas, exames, procedimentos médicos, OPMEs e tratamentos de saúde.

William Mendes


Post Scriptum: o primeiro texto desta série, de apresentação, pode ser lido aqui.


7.2.24

História dos bancários: um olhar (XIII)



A questão da saúde dos trabalhadores e as autogestões em saúde

Memórias e contribuições para reflexão (I)


Gosto da ideia de me considerar uma pessoa de sorte. O cidadão que sou hoje é o resultado de um conjunto de veredas que foram aparecendo em meu caminho existencial ao longo das décadas de vida. O que sou é o resultado das oportunidades que a vida me presenteou e o fato de ter abraçado algumas delas. Posso dizer que tem um componente de sorte ou acaso nisso.

Se passei a maior parte de minha vida laboral trabalhando em uma instituição financeira, um banco público, isso não foi algo desejado ou planejado pelo adulto jovem das décadas de oitenta e noventa. As veredas foram surgindo e o trabalhador foi indo por uma ou outra trilha. É evidente que fui um em milhões de trabalhadores de nossa geração que trabalhou nos trabalhos que havia em nossa época. Não fui nem melhor nem pior que meus pares, talvez tenha sido bastante esforçado e focado.

Como trabalhador do setor bancário, as oportunidades de aprendizagem foram diversas, nas mais diferentes áreas dos saberes humanos. 

No Unibanco, nos anos oitenta, trabalhei em agência e departamento. À época, o trabalho bancário era praticamente manual, com pouca tecnologia. Trabalhávamos com muitos papéis, com calculadoras, cheques e ordens de pagamento, cartões de crédito, e numerário, muito dinheiro em papel e escritural. Em agência, aprendemos cedo a lidar com gente. E eu tive a sorte de dar atenção aos representantes de nossa categoria, os dirigentes sindicais.

No Banco do Brasil, dos anos noventa adiante, passei a maior parte de minha vida de trabalhador. Foram décadas de dedicação ao trabalho bancário e ao povo brasileiro. Tive convites para sair do banco e atuar na área de minha formação em contábeis. Preferi seguir no BB. Sempre me vi como um servidor público. Nunca me imaginei como empresário ou empreendedor disso ou daquilo. Sairia do banco público somente se fosse para outra área do Estado, por querer servir ao povo e ao meu país.

---

A última função que exerci como trabalhador bancário foi ser gestor eleito de uma autogestão em saúde. A experiência de representar milhares de colegas de trabalho, da ativa e aposentados, em uma associação tão importante para a vida das pessoas me fez mergulhar na função e na área como nunca havia feito na vida, por mais intenso que havia sido em tudo que fiz. Foi um mergulho de quatro anos praticamente sem dormir. Achei que tinha que recuperar um tempo que não havia tido em relação ao conhecimento daquilo que era responsável a partir do dia da posse na função.

Quando terminei a missão, quatro anos depois, tive comigo um entendimento que se somou ao sentimento que já tinha da existência, a ideia de que tudo que sabemos temos que passar adiante. Quando criei meus blogs há quase duas décadas, tinha essa visão das coisas. À época, meados da primeira década dos anos dois mil, criei um blog de cultura e outro sindical, e passei a fazer um esforço extra na agenda cansativa dos dias de representação para escrever sobre cultura e sobre a luta de classes no mundo do trabalho.

Foi dessa forma que fui escrevendo, estudando, aprendendo, escrevendo, fazendo política nas bases sociais, fazendo novo curso acadêmico em Letras, escrevendo, organizando a classe trabalhadora no setor no qual trabalhava, estudando a história do Banco do Brasil, das associações e sindicatos, a história das conquistas de direitos e a história da autogestão em saúde na qual fui diretor de saúde. E assim, aos poucos, fui escrevendo tudo isso que aprendi no trabalho e na política. 

Após um período escrevendo memórias neste blog (estou editando agora as memórias em formato de livro), talvez eu siga escrevendo aqui um novo tipo de memórias, mais focado nas experiências dos quatro anos vividos como gestor de uma autogestão em saúde, a Cassi. 

Quando terminei a missão naquela associação focada em saúde, fiz diversos textos de balanços do mandato. Quem sabe agora, olhando de longe as centenas de textos que fiz no calor da gestão, possa deixar aqui algumas contribuições sobre a área, porque o que mais ficou em mim é o quanto nós todos desconhecíamos (desconhecemos...) as questões inerentes a um setor que lida diariamente com algo tão delicado: a saúde e a vida das pessoas.

Após compreender melhor as grandes questões do setor de gestão de saúde, do sistema de saúde, dos atores do setor de saúde, percebi que seria fundamental divulgar para as pessoas comuns, usuários dos sistemas de saúde, detentores de direitos e obrigações em relação aos sistemas de saúde que existem, que as pessoas, os trabalhadores e seus representantes precisam ter noções das coisas do setor. A repetição da expressão não é cacoete de linguagem, é proposital. As pessoas precisariam ter noções mínimas dos setores e sistemas de saúde para lidarem melhor com isso.

Enfim, talvez eu discorra sobre minhas memórias da época que atuei com gestão de saúde em nome da classe trabalhadora.

William Mendes