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25.11.24

Diário e reflexões

 


Ushuaia (ARG), 25 de novembro de 2024. Segunda-feira.


Opinião


O QUE É UM TRABALHO DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA?

Sempre que vejo críticas ao trabalho de representação política me sinto na obrigação de manifestar o que penso a respeito quando entendo que há distorções no caráter da crítica feita.

Por ter sido um dirigente nacional de uma das principais categorias organizadas do país, a categoria bancária, com o único acordo coletivo de âmbito nacional e para diversas empresas, entendo que seja importante não permitir que se desvalorize a Política como solução pacífica das controvérsias.

Vi ontem um questionamento sobre a jornada de trabalho dos parlamentares no contexto do importante debate acerca da redução da jornada de trabalho legal da classe trabalhadora brasileira, hoje de 44 horas semanais, em até seis dias da semana (6x1) durante a jornada semanal. 

Um dos maiores influenciadores das redes sociais, hoje uma pessoa do campo progressista, questionava em sua postagem a atuação dos parlamentares em Brasília somente por 3 dias da semana, justamente os parlamentares que podem ou não reduzir a absurda jornada de 6x1 do povo brasileiro.

O influenciador pedia em seu post um argumento coerente que justificasse a jornada de 3 dias dos parlamentares nas sessões de votação do Congresso Nacional. 

Eu não vou entrar no mérito da atuação efetiva dos parlamentares. Vou expor meu argumento sobre o que entendo ser o trabalho de representação política em sua visão ampla e democrática.

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VISITA ÀS BASES SOCIAIS É TRABALHO POLÍTICO

A argumentação sobre trabalho de representação política que vou expor aqui é baseada em minha experiência efetiva de mandatos eletivos ao longo de praticamente duas décadas.

Em 2014 passei a exercer um mandato eletivo de diretor de saúde de uma das maiores autogestões em saúde do país. A base social que elegeu nossa chapa com sete pessoas foi uma base nacional, fomos eleitos por associados e associadas de todos os estados brasileiros e Distrito Federal.

Fizeram parte do processo de organização da chapa, construção das propostas e campanha junto aos trabalhadores da ativa e aposentados dezenas de entidades representativas dos eleitores: sindicatos, associações e grupos políticos diversos. Foi uma disputa intensa entre grupos à direita e à esquerda.

Ao iniciar o mandato de 4 anos, sendo a minha função de representação em tempo integral, com reuniões semanais na sede da autogestão em Brasília, me mudei para a cidade por uma questão de logística.

Pela história de representação que tinha, por ser quem eu era no movimento nacional da categoria bancária e pela formação política que tive através dos bancários da CUT, a primeira decisão que tomei foi a de que o nosso mandato não seria burocrático e distante das bases sociais. 

Nosso mandato na direção da autogestão em saúde seria um mandato combativo contra as teses de redução de direitos dos associados, esclarecedor sobre os temas ligados ao sistema de saúde que gerenciávamos e organizador das bases sociais, sobretudo das entidades representativas, para o enfrentamento nas lutas entre patrão e trabalhadores e para que os associados fortalecessem o modelo assistencial ao conhecê-lo melhor.

Já nos primeiros 3 meses de mandato, reunimos todas as equipes sob nossa liderança e realizamos um planejamento estratégico para os 4 anos de trabalho. Ali traçamos os objetivos, as estratégias e táticas e os principais eixos a serem desenvolvidos nos 4 anos de trabalho para defender direitos dos associados e ampliar o modelo assistencial da autogestão.

A mim coube o papel central de fazer o que estivesse ao alcance da representação política daquela direção, pois a metade da direção era indicada pelo patrão e a outra metade era eleita pelos associados no país. Eu seria uma das pontes entre a direção da autogestão e os associados através de um contato permanente com os formadores de opinião: entidades sindicais, associações da ativa e de aposentados e conselhos de usuários. E também os associados em mais de 4 mil locais de trabalho no Brasil.

Assim fizemos obstinadamente por 4 anos. À medida que as dificuldades foram aparecendo, fomos desenvolvendo estratégias para superá-las. O patrão gestor impôs dificuldades mês a mês internamente, tirou recursos para que eu não exercesse meu trabalho estatutário de gestão das unidades de saúde nos Estados, por exemplo. Nós demos um jeito de ir aos Estados com recursos próprios ou das entidades representativas etc.

Durante os 4 anos atuei nos eixos de trabalho sob minha responsabilidade. Lia e estudava pautas gigantes de súmulas e atas, relatórios técnicos e estudos relativos aos sistemas de saúde. Começava a leitura na sexta-feira quando eram liberados e os lia nos finais de semana até definirmos todas as estratégias políticas para as reuniões de diretoria às terças-feiras. Diria que entre sexta e terça, trabalhava umas 40 horas.

Como esse trabalho técnico e político podia ser feito de qualquer lugar, nosso planejamento era perseguido de forma militante. Ao longo do mês, eu sempre estava trabalhando alguns dias nas bases sociais da autogestão: os Estados onde estavam as unidades de atendimento e os associados que representávamos. 

Nos 4 anos, participei de 52 conferências de saúde, sendo palestrante. Me disponibilizei em mais de uma centena de reuniões presenciais em entidades representativas e conselhos de usuários. Se somar esse trabalho ao outro, foram mais de 80 horas semanais de trabalho de representação.

A forma como exercemos o mandato deu resultados positivos. O modelo assistencial da autogestão se consolidou naquele período, virou consenso entre os agentes envolvidos do sistema (stakeholders), viramos referência no setor e fomos premiados na área de saúde. 

Durante nossa gestão, os associados não perderam direito algum, mesmo estando a operadora em uma de suas recorrentes crises de desequilíbrio econômico-financeiro, algo que se repete desde sua criação.

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A EDUCAÇÃO POLÍTICA DA CLASSE TRABALHADORA DEVE COMBATER MITOS E NARRATIVAS DESPOLITIZANTES

Vou finalizar esta reflexão citando mais um exemplo pessoal para depois falar do que entendo ser mais adequado no trabalho de fortalecimento da representação política do povo, ou seja: democracia ou o povo no poder.

Logo no início de nosso trabalho de direção da autogestão em saúde, um mandato eletivo nacional com uma exigência mista de competência técnica e política ao mesmo tempo, começaram os ataques de nossos adversários políticos. No nosso caso, havia um constante ataque da parte patronal e dos grupos derrotados nas eleições, o principal deles do segmento da direita política.

Uma das formas que definiram para atacar nosso mandato era desqualificar o trabalho de representação política. Diziam os adversários na gestão - o patrão e a direita - que a operadora ia mal porque tinha representantes dos trabalhadores, que a política só atrapalha as empresas blá blá blá. Esse tipo de narrativa é muito comum por parte de burocratas e liberais. 

Detalhe: as áreas de administração e de finanças que geravam consecutivos déficits e desperdícios na operadora são todas geridas pelo patrão naquela autogestão. Sem contar que parte dos déficits é estrutural, tem relação com o mercado de saúde, sempre com dificuldades e déficits. O patrão queria que só os trabalhadores pagassem a conta.

Logo nos primeiros meses de mandato, duas ex-gestoras da operadora, derrotadas na eleição, publicaram texto nas redes sociais à época, inventando mentiras a meu respeito, sendo a acusação principal a pecha de que o diretor de saúde não trabalhava, eu seria uma espécie de "vagabundo", pois diziam que eu só trabalhava nas terças-feiras, dia de reunião da diretoria executiva. Percebem como atuam desqualificando o trabalho político de representação da classe trabalhadora?

O fato concreto é que ouso dizer que poucas vezes na história da autogestão uma pessoa leu e estudou tanto a operadora, sua história, sua operação interna e no mercado, seu público usuário; e defendeu os direitos de seus associados como fizemos. No final do mandato, a única forma que encontraram de nos tirar tempo de embate político e nos colocar sob forte ataque foi um processo de lawfare (um processo administrativo baseado em cartinha anônima, arquivado depois por falta de materialidade).

Então, é interessante que politizemos as questões relativas ao povo e ao mundo do trabalho. É papel das lideranças do campo democrático e também das áreas de formação política dos movimentos populares ampliar os conceitos de trabalho e representação política. Uma liderança exercendo um mandato não pode se tornar uma burocrata e se afastar das bases sociais. Qualquer parlamentar ou representante deverá conjugar sua jornada de trabalho na área onde atua como eleito e nas bases de onde saiu o seu mandato.

Para citar algum exemplo de pessoas que conjugam atuações técnicas e políticas tanto nos ambientes para onde foram eleitos como nas bases de onde vieram, eu aponto os mandatos da jovem vereadora Luna Zarattini (PT-SP), do deputado estadual Marcolino (PT-SP), do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) e do senador Paulo Paim (PT-RS). Esses representantes congregam um pouco do que expus em minhas reflexões acima.

Eles trabalham de segunda a segunda, de manhã, de tarde, de noite, nos finais de semana, têm competências técnicas e políticas, ao mesmo tempo que fazem duríssimos embates nos parlamentos onde atuam, dão um jeito de prestarem contas e pisar o chão de onde vieram os votos e a esperança das pessoas que confiam neles. Estão sempre sob fogo cerrado e as baterias inimigas dos adversários deles e do povo que eles representam têm munição pesada para depor contra a imagem e o trabalho deles.

É isso. Espero ter contribuído sobre essa questão do que seja um trabalho de representação política e as diversas narrativas criadas em torno dessa ferramenta central da democracia e da participação social nos destinos de todos nós.

William Mendes

Ex-dirigente nacional dos bancários


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