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9.2.24

História dos bancários: um olhar (XIV)


CartaCapital nº 1294.

A questão da saúde dos trabalhadores e as autogestões em saúde

Memórias e contribuições para reflexão (II)


Uma reportagem da revista CartaCapital deste ano, edição 1294 de 24 de janeiro, ilustra bem os pontos que quero tratar nesta série de textos sobre a questão da saúde dos trabalhadores e as autogestões em saúde.

O Dr. Vecina diz:

"Não tem nenhum problema nos planos de saúde. O modelo é que está errado. Os planos têm um projeto assistencial que nunca teve a ver com assistência à saúde. Vendem assistência para o comprador, que quer ser atendido pelo prestador, que são os médicos, os hospitais, as clínicas. Isso não é saúde, é curar doenças".

O Dr. Gonçalo Vecina é médico sanitarista e fundador da Anvisa. Já tive o privilégio de dividir uma mesa de webinário com ele sobre saúde dos trabalhadores.

Nesta série de textos que vou fazer, pretendo compartilhar com as leitoras e leitores do blog um pouco da experiência que adquiri ao ser gestor eleito de uma autogestão em saúde dos trabalhadores, a Cassi dos funcionários do Banco do Brasil. Fui diretor eleito de saúde da Caixa de Assistência.

A categoria bancária é uma das categorias profissionais mais organizadas do país, com mais de um século de lutas e conquistas. Não à toa, temos a única convenção coletiva nacional, um contrato de trabalho que vale para diversas empresas e para todas as regiões do país, abrangendo mais de 350 mil trabalhadoras e trabalhadores, de empresas públicas e privadas.

Uma das conquistas dessa categoria profissional é ter algum tipo de previsão de acesso a planos de saúde dentro do rol de direitos nas convenções e acordos coletivos, ou mesmo sem constar dos contratos coletivos. Alguns segmentos têm, inclusive, acesso a modelos de autogestão em saúde, caso, por exemplo, dos dois maiores bancos públicos do país, o BB e a Caixa Federal.

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ALGUNS DADOS DO SETOR DE SAÚDE, A PARTIR DA MATÉRIA DA REVISTA CARTACAPITAL

Ao ler a matéria "Onde está o gargalo?" que apresenta a seguinte questão "O número de segurados cresce e as mensalidades disparam. Ainda assim, os planos acumulam prejuízos bilionários", matéria de Fabíola Mendonça, tirei alguns dados interessantes para ilustrar o que penso sobre a problemática na saúde suplementar.

Dados do setor:

- 20 bilhões de déficit em 3 anos;

- 1,9% de crescimento no número de segurados nos 10 primeiros meses de 2023;

- 51 milhões de participantes, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar);

- 3,1 bilhões de lucro no 3º T/23;

- 6,3 bilhões de prejuízo de jan-set/23;

- 8,37 bilhões de resultado financeiro no setor (que compensa os prejuízos operacionais);

- 88,2% de sinistralidade (índice insustentável a longo prazo);

- 331 operadoras com prejuízo (quase metade do setor);

- Em 10 anos, houve redução de 920 para 680 empresas no setor;

- 711,4 bilhões de reais foram as despesas de saúde no Brasil em 2019, sendo 427,8 bi por parte das famílias e instituições sem fins lucrativos (5,8% do PIB) e 283,6 bi de desembolso do governo (4% do PIB);

- 68 das 680 operadoras não têm faturamento anual que possa pagar 1 (uma) dose de Zolgensma, cuja dose custa 7,6 milhões de reais. O medicamento é indicado para bebês de até 6 meses de idade diagnosticados com Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I. A ANS incluiu a medicação no Rol obrigatório desde fev/23;

- Terapias e tratamentos passaram a pesar mais nos custos dos planos depois da pandemia de Covid-19. Antes eram 2% dos custos totais, agora são 9%. Terapias de fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e fisioterapia. Essas terapias constam do Rol obrigatório da ANS para tratamento de Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD) e Transtorno de Espectro Autista (TEA);

- A judicialização é responsável por 40% do déficit do setor nos últimos anos. São 973 queixas por dia;

- Reajustes são impagáveis: de 2018 a 2023, os planos individuais subiram 35% e os coletivos subiram 80%. Em geral, a classe trabalhadora está nos planos coletivos, atrelados a um CNPJ, por estarem empregados em uma empresa com possibilidade de adesão a um plano de saúde, que sobe a mensalidade sem controle da ANS, sobe conforme o comportamento dos custos do próprio plano;

- Idade e pacto intergeracional: o Brasil em 2022 atingiu 15,8% de pessoas com 60 anos ou mais. Na saúde suplementar o índice é de 14,3%. Quanto menor o número de jovens contribuindo, pior para o custeio intergeracional. Em 10 anos a faixa de 20-39 anos caiu 7,6% e a faixa de 60 anos adiante cresceu 32,6%;

Comentário do blog:

Acrescento a esses dados que nas autogestões em saúde os perfis das faixas etárias são bem diferentes das carteiras do mercado privado de planos de saúde que visam lucro. As autogestões concentram grandes quantidades de pessoas nas faixas etárias acima de 60 anos porque elas funcionam de forma diferente do mercado, elas não escolhem os participantes das carteiras.

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E AS AUTOGESTÕES EM SAÚDE?

Uma outra observação importante do Dr. Vecina nos ajuda a entender os problemas apontados na matéria sobre custos na saúde suplementar: o modelo de negócio.

A reportagem nos diz que o sanitarista explica que as operadoras se portam como meros intermediários entre os usuários do sistema e os prestadores dos serviços, sem nenhuma preocupação com a saúde básica e sem querer abrir mão de parte dos lucros.

Aí está um problema existencial, eu diria, central na vida das operadoras de planos, principalmente nas autogestões em saúde, que comento a partir de agora, tendo como base minha experiência na Cassi, mas que pode ser referência para várias outras autogestões em saúde.

RECEITAS LIMITADAS, DESPESAS ABERTAS - As autogestões têm características especiais quando observamos as operadoras de planos de saúde do mercado - medicinas de grupo, seguradoras e cooperativas médicas -, todas têm problemas parecidos nos usos dos recursos dos planos ao comprar serviços no mercado capitalista de procedimentos de saúde, mas têm diferenças nas possibilidades de receitas e públicos possíveis.

Autogestões não visam lucro, não podem escolher o público participante como os planos de mercado fazem, não escolhem as áreas geográficas de disponibilização do plano e são obrigadas a atenderem demandas em áreas sem prestadores disponíveis, e as receitas não podem ser equalizadas com as despesas assistenciais com a mesma desenvoltura dos planos de mercado. Probleminhas básicos esses, vocês não acham?

ATENÇÃO PRIMÁRIA E CONTROLE DE RISCOS É A MELHOR PERSPECTIVA DE LONGO PRAZO - Pelas características que citei acima, é muito importante para uma autogestão em saúde desenvolver um modelo assistencial cujos objetivos sejam a saúde integral de seus participantes e não a cura de sua população adoecida ao longo do tempo. 

O ponto positivo das autogestões é a possibilidade de manterem seus participantes no longo prazo, coisa difícil no mercado. Como os assistidos no sistema de saúde de uma autogestão podem ficar décadas no plano, a prevenção e a promoção de saúde trazem grande benefício tanto para a saúde das pessoas quanto no uso do recurso do plano na hora de comprar serviços na rede credenciada, que visa lucro com doenças.

Como as autogestões em saúde não escolhem seus públicos participantes como ocorre no mercado privado que visa lucro, elas têm em seus grupos de assistidos faixas etárias com idades maiores que as do mercado. E também podem ter segmentos com doenças pré-existentes, algo que não ocorre no mercado privado - ou ocorre menos. Como fazer para equilibrar carteiras de participantes assim sendo a inflação médica quatro ou cinco vezes mais que a inflação oficial anualmente?

A Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, a Cassi, completou 80 anos de existência em 2024. Durante as primeiras cinco décadas, o modelo era muito próximo daquilo que o Dr. Vecina explica na reportagem da revista: uma operadora que intermediava compras de serviços de saúde entre usuários e vendedores de serviços no mercado. 

A conta não fecha, é algo mais que claro! Não há receita em plano de saúde que aguente pagar todas as ofertas que a indústria da saúde tem disponível para eventuais clientes (pacientes) que possam pagar, ou os planos de saúde dos clientes, ou o governo/SUS que a justiça mande pagar. A conta não fecha!

A Cassi, os trabalhadores e o patrocinador Banco do Brasil chegaram a um acordo em 1995/96 e fizeram uma reforma estatutária cujo objetivo da Caixa de Assistência passava a ser outro, criar uma autogestão com CNPJ próprio, estrutura e modelo de saúde próprios para atuar na Atenção Integral à Saúde de seu público-alvo. 

Como a população assistida era muito estável e ficaria décadas dentro do sistema, seria possível atuar através de um modelo de Atenção Primária, e foi escolhido o modelo de Estratégia de Saúde da Família (ESF), para gerir a saúde de centenas de milhares de pessoas num país continental, estando o público assistido no sistema tanto na fase laboral quanto na fase de aposentadoria.

Quando fui gestor do sistema de saúde Cassi, desenvolvemos metodologias de estudos que comprovaram que o modelo ESF/CliniCassi era altamente eficaz em seus objetivos. O público monitorado pelo modelo que era fidelizado há mais de 3 anos tinha resultados extraordinários em diversas dimensões avaliadas, inclusive na questão das despesas assistenciais, até mesmo de faixas etárias maiores. Quase todas as faixas tinham curvas de despesas melhores em participantes vinculados ao modelo ESF em relação aos participantes soltos no sistema e na rede credenciada, sem monitoramento pelas equipes de família da Cassi.

Concluo assim essa postagem comentando a partir de dados atuais do setor de saúde a importância para os planos de saúde e a saúde suplementar, principalmente para as autogestões em saúde, em estabelecerem objetivos de atuarem na saúde efetiva de seus participantes ao longo do tempo e não só como intermediadores de compra e venda de serviços impagáveis da indústria de consultas, exames, procedimentos médicos, OPMEs e tratamentos de saúde.

William Mendes


Post Scriptum: o primeiro texto desta série, de apresentação, pode ser lido aqui.


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