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28.7.22

Memórias (XXIX)


Outubro de 2016, indo ao
19º Congresso da Unidas.


A saúde vai mal quando não temos instituições públicas e privadas focadas na formação de cidadãos com consciência política, educação em saúde e uma ética humanista


Opinião

As postagens de memórias neste blog que utilizei para prestar contas dos mandatos eletivos que exerci ao longo de quase duas décadas de vida pública são postagens que mesclam sentimentos diversos e até antagônicos como, por exemplo, gratidão, dor, alegria, tristeza, raiva, resignação; às vezes esperanças, às vezes.

O conhecimento que adquirimos ao longo de nossa existência é algo essencial para o que somos: seres humanos da espécie homo sapiens. O que nos diferencia do restante dos seres vivos no planeta Terra é a cultura, o saber acumulado, a capacidade de criação, a história, a razão e a consciência, ou seja, são os atributos humanos oriundos de nosso cérebro constituído por 86 bilhões de neurônios, como nos ensina o neurocientista Miguel Nicolelis.

Ao longo de minha vida de representação da classe trabalhadora fui adquirindo conhecimentos novos através das mais diversas formas de educação e cultura: a vivência na militância política é uma excelente escola de vida; os estudos formais e os específicos das áreas nas quais atuava também; os conhecimentos gerais que almejo conhecer para me tornar uma pessoa melhor e mais preparada para contribuir para a sociedade humana ainda me movem pelos caminhos a se abrirem, já que o poeta diz não haver caminhos.

A última representação que exerci foi na área de saúde, fui gestor de uma autogestão com um potencial incrível de realizações na área de saúde dos trabalhadores e na questão de realizar experiências exitosas em sistemas de saúde que poderiam ser referência para as sociedades humanas em relação a modelos fechados de atenção primária e medicina de família e comunidade e inclusive referência para sistemas integrados de saúde nos mais diversos graus de complexidade. A autogestão poderia ser... mas não é mais uma referência, na minha opinião, e avalio que a autogestão dos bancários do Banco do Brasil terá muitas dificuldades de seguir existindo nas próximas décadas.

PARA ONDE ESTAMOS INDO EM RELAÇÃO À SAÚDE HUMANA?

Quando digo que a saúde vai mal por falta de instituições públicas e privadas focadas na formação de cidadãos com consciência política, educação em saúde e uma ética humanista quero dizer com isso que pode existir esperança num amanhã melhor caso haja investimento em formação e educação: basta mudarmos a partir de hoje, pois nossos cérebros humanos são flexíveis e mudam assim que são estimulados para isso; por outro lado, há enormes perspectivas de piora no quadro da saúde humana caso as coisas continuem como estão neste exato momento em que escrevo esse texto de memórias.

Ao olhar a saúde no Brasil - olhar com o conhecimento que adquirimos ao vivenciarmos a experiência de gestão de sistemas de saúde - ao olhar os sistemas públicos e privados e as pessoas que deles dependem, a gente se segura para não chorar e não cair numa depressão profunda. O quadro é desesperador! Faço uma comparação com uma savana ou selva na natureza. Estamos sós como presas numa savana repleta de predadores vorazes; não estamos sequer reunidos em manadas de presas que se protegem umas às outras em meio aos ferozes predadores. Que cenário ruim pra nós, presas a serem predadas! Não temos quem nos proteja neste momento da história.

Ao olhar pessoas e empresas dos sistemas de saúde ao nosso redor - hospitais, clínicas, profissionais diversos, planos de saúde, fornecedores de materiais e medicamentos, reguladores e demais envolvidos no setor - alternamos aqueles sentimentos que disse acima: poderíamos estar muito bem, felizes e esperançosos, mas infelizmente estamos muito mal, muito aquém do que poderíamos estar, caso houvesse interesse dos donos do poder político e econômico em orientar, educar e formar pessoas conscientes, inclusive para a necessária convivência sustentável com o setor de saúde.

Chegamos a um momento fantástico do conhecimento humano nas áreas de intervenções cirúrgicas, medicamentos, materiais do setor, saberes para se evitar os adoecimentos. No entanto, talvez tenhamos chegado também ao momento mais dramático da história humana em relação à falta de ética e de visão humanista neste mundo dominado pelos valores ideológicos do capitalismo. Não valemos mais nada como seres humanos. No mercado de saúde, somos meios para que capitalistas ganhem dinheiro com a mercadoria saúde. E assim, o potencial incrível que teríamos para as pessoas viverem melhor se transformou numa savana onde nossos corpos, nossa saúde, são meios (presas) para se ganharem dinheiro às custas até de nossas vidas.

Cirurgias invasivas e dolorosas às vezes desnecessárias, medicamentos questionáveis, próteses e materiais de altíssimo custo e marca exigidos pelos profissionais de saúde (os doutores, os deuses) que poderiam ser substituídos por outros de mesmo efeito e eficácia, publicidades e propagandas agressivas manipulando pessoas (presas) para a realização de procedimentos que poderiam ser adiados ou evitados... sem instituições públicas e privadas que nos protejam nessa selva de predadores estamos vulneráveis, muito vulneráveis. Afinal de contas não temos o saber dessa área, a palavra final dos especialistas é como sentenças de vida ou morte para nós leigos dos saberes de saúde. E assim estamos neste momento da história humana e brasileira.

E A AUTOGESTÃO EM SAÚDE DA COMUNIDADE DOS TRABALHADORES DO BANCO DO BRASIL?

Vi nesta semana uma matéria da confederação dos bancários da CUT (Contraf) apontando preocupações com novos déficits da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil. Os associados entraram com novos recursos através de reforma estatutária em 2019 para que a entidade tivesse equilíbrio econômico-financeiro e promovesse o avanço do modelo testado e aprovado de Atenção Integral à Saúde, que na Cassi se dava através da Estratégia de Saúde da Família (ESF), uma forma de Atenção Primária à Saúde (APS), desenvolvida na associação desde a reforma estatutária de 1996 cujas bases eram uma estrutura própria de saúde (as unidades CliniCassi) e equipes próprias de profissionais e programas de saúde adequados a cada participante do sistema. 

A estrutura própria de saúde da autogestão Cassi atuaria para mapear, orientar e acompanhar ao longo da vida toda a população assistida pelo Plano de Associados, cerca de 400 mil pessoas, tanto durante a fase laboral dos associados e seus dependentes quanto após essa fase, durante o gozo da aposentadoria. Infelizmente, os gestores eleitos e indicados após a reforma estatutária de 2019 (com exceção da parte da gestão que chegou agora em 2022) decidiram por conta própria se desfazerem do modelo testado e aprovado por décadas e passaram a orientar a associação para uma lógica terceirizada de modelos do mercado de saúde, onde a saúde das pessoas não é o foco, nunca foi, o foco é o lucro com a mercadoria "saúde".

Vi também nesta semana a campanha da direção da Cassi para a indicação de parentes para a venda de planos de saúde - os planos para familiares de associados. Entrei no site da Cassi, olhei, olhei, e concluí que as coisas vão mal e as perspectivas não são boas para nós associados da Caixa de Assistência. 

OPINIÃO - Ao olhar os números atuais da Cassi e os participantes de seus "planos de saúde" vi o quanto continuo acreditando nos conhecimentos que adquiri durante a gestão da associação. Focar todos os esforços da autogestão nesses planos de mercado é um tremendo equívoco e gasto de energia por parte da direção da Cassi. Não se fala em outra coisa na "empresa" Cassi que não seja o plano "Cassi Essencial" e mesmo assim até agora não chegaram sequer a 4 mil planos vendidos... Isso é um absurdo! Falei isso durante anos! A direção deveria estar centrada na ESF para os 378 mil participantes do Plano de Associados que tendem a permanecer no sistema por décadas. Nós mostramos os resultados da ESF em participantes vinculados ao modelo. Os custos com a compra de serviços de saúde no mercado dessa população vinculada à ESF são até 40% menores. Esqueceram tudo isso... ou fazem de conta que não sabiam.

A CASSI NÃO É PLANO DE SAÚDE... É CAIXA DE ASSISTÊNCIA, E OS PARTICIPANTES DEVERIAM SER ORIENTADOS SOBRE ISSO

PONTOS FORTES - Quais são os pontos fortes da Cassi, os potenciais de realização dos objetivos centrais da Caixa de Assistência: cuidar da saúde dos seus associados e dependentes? Num resumão geral, posso dizer que o melhor potencial da Cassi é o Plano de Associados com os seus 378 mil participantes, conhecidos, monitorados e orientados ao longo das próximas décadas através das equipes de família e dos programas de saúde das unidades CliniCassi existentes e a serem criadas. Provamos com estudos que os vinculados ao modelo tinham um custo assistencial bem menor ao usar os recursos na rede prestadora do mercado, mesmo nas faixas etárias maiores! 

Se quisessem, os donos do poder político no sistema Cassi - a direção do patrocinador e a direção da associação, juntamente com as entidades representativas - teriam uma capacidade considerável de educação e orientação em saúde e no uso do sistema Cassi em relação ao modelo ESF e no uso da rede de prestadores quando necessário.

PONTOS FRACOS - Quais são os pontos fracos da Cassi e as apostas que tendem a dar errado e prejudicar o sistema de saúde da autogestão? O maior equívoco é querer disputar mercado com os planos de mercado! Acordem! Nem se a Cassi quisesse poderia competir em igualdade com o mercado porque a Cassi é uma autogestão e a legislação jamais vai permitir a ela as flexibilidades que os planos de saúde do mercado têm! Será que é tão difícil entender isso? Desfazer as estruturas próprias de gestão e atendimento de saúde de atenção primária e ESF é outra coisa bizarra! A estrutura própria da Cassi - Central de atendimento, de unidades regionais Cassi e CliniCassi - é muito barata pelo que realiza (o menor custo adm. do mercado de saúde: 6,1% de (d)eficiência operacional para abril/2022 - Visão Cassi). Cada equipe nuclear de família que cuida de algumas centenas de participantes gera uma economia exponencial no uso dos recursos na rede prestadora. Nossos vinculados deixam de ser "presas" nessa savana de geração de procedimentos para enriquecer capitalistas do mercado privado.

Durante os quatro anos nos quais estivemos na direção da associação, como diretor eleito de saúde, tomamos conhecimento do que era a Cassi, para que havia sido criada, quais os objetivos em saúde que as gerações anteriores a nós tinham definido como norte da autogestão e procuramos seguir aquilo que era a essência da associação: cuidar da saúde de seus associados e dependentes através de um modelo preventivo e sustentável. A Cassi nunca foi nem deveria querer ser uma empresa de saúde de planos de mercado. Nunca!

Não vou ficar de blá-blá-blá repetindo o que demonstramos por 4 anos em centenas de textos e apresentações e com dados reais. A Cassi recebeu recursos novos para avançar no modelo que nós havíamos comprovado a eficácia: APS/ESF/CliniCassi. Mudaram tudo! A direção acha que a Cassi vai concorrer com o mercado privado de planos de saúde... francamente, até um jovem estudante da área (politizado, claro!) saberia que isso não vai dar certo. O foco da sustentabilidade da Caixa de Assistência deveria ser seus participantes do Plano de Associados e o modelo preventivo e mais eficaz da ESF.

Que canseira ver a repetição daquilo que não dá certo! É minha opinião, e ela não é de leigo sobre a autogestão em saúde de nossa comunidade do Banco do Brasil. É opinião política e técnica, de alguém que estudou muito a nossa Caixa de Assistência.

Enquanto a Cassi segue se desfazendo, quem de nós tem confiança plena nos tais terceirizados dos atendimentos por tela (telemedicina, que deveria ser atendimento complementar, não ferramenta principal) que não nos conhecem nem conhecem o nosso histórico de saúde como as equipes de profissionais dos modelos de medicina de família e comunidade conhecem (as equipes ESF no caso da Cassi)? Difícil...

William

Ex-diretor eleito da Cassi


Post Scriptum:

- Fiz um vídeo em julho de 2019 no qual falo de estratégias de negociação com o patrocinador e falo do modelo de saúde da Cassi diferenciando despesas adm. e despesas assistenciais e abordo o equívoco de reduzir a estrutura própria da autogestão. Fizeram isso nos últimos 3 anos. Ver aqui o vídeo.

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