Opinião
"Os principais responsáveis pela disseminação de cultura e valores são os grupos dirigentes" (Aldo Fornazieri: Em: "Democracia débil", Carta Capital, nº 1169)
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA APS
Fui convidado pela organização do II Encontro Nacional dos Conselheiros de Usuários da Cassi para falar a respeito dos desafios e perspectivas da Atenção Primária à Saúde (APS). Antes de mais nada, agradeço pelo convite, pela confiança e pela oportunidade de compartilhar a experiência que adquirimos na gestão do modelo assistencial de nossa Caixa de Assistência.
O evento aconteceria nesta quinta 9/09/21, mas ficou para nova data. Combinei com a coordenação de publicar com antecedência os textos que estou produzindo ao estudar para o evento, assim as pessoas interessadas podem ler e interagir com as informações e argumentos.
Este texto é continuação de um texto anterior. Para lê-lo, clique aqui.
O primeiro desafio é meu, é escolher o que entendo ser o mais relevante na minha apresentação sobre APS em relação à autogestão Cassi, entidade de saúde dos funcionários do BB, que definiram na reforma estatutária de 1996 o desejo de organizar um sistema de saúde baseado na integralidade da atenção visando melhorar a qualidade de vida dos usuários e a estratégia definida para essa missão foi escolher o Modelo de Atenção Integral à Saúde.
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A apresentação será feita em 15 minutos. Sendo assim, optei por focar a conversa com os participantes do encontro mais na questão política do existir da Cassi e na importância da cultura e dos valores difundidos pelas classes dirigentes e formadoras de opinião.
O modelo assistencial foi central nas formulações da Cassi que temos hoje. Deixar de ser mera "pagadora de serviços para a doença" e ser uma "promotora de saúde para preservar e melhorar a qualidade de vida, através de uma ação integrada (prevenção, assistência e avaliação multidisciplinar sobre o indivíduo e não apenas sobre o sintoma)" foi o objetivo alcançado pela Comissão Negociadora da reforma estatutária de 1996, registra o informativo "O Espelho Nacional " de abril de 1996 (3).
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Por quatro anos estudei diariamente a Cassi e suas relações políticas e sociais com os meios nos quais ela está inserida: sua história, a gestão da associação, seus planos de saúde, documentos internos, percalços vividos, relação com o patrocinador BB, associados e usuários, relação com seu quadro funcional, relação com órgãos externos e prestadores de serviços; por fim, relação da Cassi com a cultura e com os valores da comunidade Banco do Brasil.
Qual a melhor forma de contribuir para os debates dos conselheiros e conselheiras de usuários da Cassi em relação aos desafios e perspectivas da Atenção Primária na autogestão?
Como sei que a outra palestra no II Encontro será de uma pessoa da área da saúde, um profissional de saúde, o que não quer dizer que a fala não será política além de técnica, acho que minha contribuição sobre Atenção Primária seria melhor se eu dedicar os 15 minutos compartilhando minha opinião sob o ponto de vista da política, pois essa seria minha "especialidade" (rsrs), o que não quer dizer que minha fala não seja técnica, e também quero falar sobre a questão da cultura e dos valores em relação ao modelo assistencial da Cassi.
Antes de falar dos desafios da APS/ESF na Cassi, é importante - é essencial - falar do histórico da Cassi, porque a "Caixa de Assistência" é basicamente o Plano de Associados, um plano de custeio mutualista, solidário e intergeracional.
Outro direito essencial na Cassi sempre foi o direito igualitário ao acolhimento e às coberturas de saúde entre seus associados e familiares, independente da função exercida no banco, de remuneração e status quo. Atendimento igual e isonômico.
COMENTÁRIO - Seria bom que as pessoas soubessem dos debates da criação do "plano família" na reforma estatutária de 1996 para não se enganarem a respeito de planos de saúde com direitos menores como se isso fosse uma demanda dos associados como diz a direção atual. Não é!
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Histórico (conhecer a história é essencial)
MODELO DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE
Sem querer subverter a chamada do evento que foca APS, gostaria de começar falando do Modelo de Atenção Integral à Saúde, pois ele é o modelo definido pelos patrocinadores do Plano de Associados na reforma estatutária de 1996 para orientar e organizar a Cassi a partir daquele momento da existência da associação - a Caixa de Assistência. Vejamos o que dizem documentos de gestão em 2001/2002:
"O Modelo de Atenção Integral à Saúde é um conceito constituinte do Estatuto da Caixa de Assistência à Saúde - CASSI, que organiza e orienta as atividades da organização desde 1996. Atualmente, contemplado no plano estratégico da Instituição, o novo modelo assistencial da CASSI começa a ganhar forma nas suas gerências regionais: projetos de implantação de serviços próprios, com atendimento primário já foram encaminhados à sede da empresa, e o Comitê de Gerentes da CASSI Sede aprovou a metodologia de análise." (1, p. 6)
Além da citação acima do "Relatório das oficinas de Informação, Educação e Comunicação no contexto de implementação da Estratégia de Saúde da Família da Cassi", outro diagnóstico da época, do "Documento Diretor para Organização de Serviços Próprios" apontava que:
"O modelo de saúde ainda predominante em vários países, no Brasil, e também na CASSI, denominado médico-curativo, centra a atenção na doença, enfatiza a medicina curativa e atua exclusivamente sobre a demanda espontânea. A forma de remuneração aos prestadores - por procedimento realizado - além de ampliar as dificuldades para uma efetiva regulação, é fator de aumento de custos, sem correspondência sobre os indicadores de saúde." (2, p. 4)
Os primeiros sublinhados são do texto original e o sublinhado e itálico é marcação minha: "demanda espontânea". Na minha opinião, as decisões e políticas da atual direção da Cassi fazem exatamente o contrário do que seria recomendado, incentivam a demanda espontânea na Cassi e nas redes de prestadores de serviço de saúde.
Enquanto isso, mesmo com recursos novos nos últimos dois anos e superávit, a ESF e as CliniCassi não foram prioridade e não avançaram, pelo contrário, fecharam CliniCassi em Brasília. Estão desmontando o Modelo de Atenção Integral à Saúde.
POR QUE CRIAR UMA REDE PRÓPRIA DE APS/ESF?
Ora, a reforma estatutária de 1996, que visava mudar efetivamente a forma como a Cassi atuava, apontava algumas questões centrais que deveriam mudar.
Uma delas era a Caixa de Assistência parar de enfiar todo o seu orçamento nas mãos dos prestadores de serviços do mercado privado. Era sair da lógica médico-curativa para uma forma racional de uso dos recursos e acompanhamento da saúde integral de seus usuários. Foi para isso que se decidiu implantar uma rede própria de atenção primária e medicina de família em todas as regiões do país, centralizando a coordenação dos cuidados nas unidades regionais!
COMENTÁRIO - Quando chegamos à gestão da Cassi (2014), pouco mais de uma década após o lançamento da ESF (2003), o modelo assistencial de Atenção Integral à Saúde - baseado em APS/ESF/CliniCassi e programas de saúde - estava estagnado e não avançava mais, era questionado pela direção do patrocinador BB e o questionamento dividia os segmentos dirigentes também dos associados e usuários, o modelo estava desacreditado. Era a cultura e os valores daquele momento. Por isso desenvolvemos estudos nunca feitos que comprovaram a eficiência da ESF.
CASSI CONSTITUI REDE PRÓPRIA DE ATENÇÃO PRIMÁRIA E ESF: AS CLINICASSI - Outra necessidade da Cassi para a implantação do novo modelo de Atenção Integral à Saúde era constituir uma estrutura própria de saúde.
Ainda no início dos anos dois mil, a rede credenciada da Cassi era quase toda de 2º e 3º nível e não primária:
"A rede de serviços da CASSI é composta majoritariamente por prestadores de atenção secundária e terciária e em menor número de atenção primária" (2, p. 14)
Com esse diagnóstico, a Cassi completou sua estrutura de 65 CliniCassi, tendo unidades em todas as capitais e em determinadas regiões nos interiores dos Estados.
Constituímos mais de uma centena de equipes nucleares e multidisciplinares de família nas unidades, que coordenaram os cuidados de mais de 150 mil participantes. Nossos estudos entre 2014 e 2018 se valeram dessa base de dados para comprovar a eficiência da ESF.
COMENTÁRIO - Durante o mandato, consegui visitar e conhecer 42 CliniCassi e isso me permitiu discutir profundamente as necessidades das unidades próprias de Atenção Primária com a direção da Cassi e demais intervenientes.
DEIXAR DE SER MERA PAGADORA DE SERVIÇOS E SER UMA CASSI GESTORA DA ATENÇÃO À SAÚDE DA POPULAÇÃO ASSISTIDA - E a questão de a Cassi ser uma mera pagadora de serviços era algo que não dava mais porque isso é insustentável para uma operadora de saúde, ainda mais uma autogestão, cujos recursos são praticamente fixos ao longo do tempo, pois se baseiam em salário e benefícios dos associados.
EM 2001
"A cobertura assistencial da população beneficiária ainda é prestada, majoritariamente, pela rede credenciada o que pode ser comprovado pela composição das despesas básicas, onde os serviços contratados representam 97% e os serviços próprios apenas 3% do total pago pela empresa" (2, p. 9)
COMENTÁRIO - Agora em 2021, a direção atual se esforça para destruir toda a rede própria constituída por gerações na Cassi, terceirizando tudo. É um verdadeiro absurdo os cortes que a gestão vem fazendo porque as despesas administrativas da Cassi não chegam a 6% com tudo que faz em termos de coordenação e gestão em saúde de centenas de milhares de usuários num país continental. Essa desconstrução não é inteligente! É lesiva ao presente e futuro da Cassi.
Desafios para avançar a APS/ESF
CULTURA E VALORES DOS GRUPOS DIRIGENTES
O que vemos na Cassi hoje? Quais são os valores transmitidos pela Caixa de Assistência (a "empresa") a seus intervenientes (seus "stakeholders")? Quais são seus objetivos centrais em relação aos seus associados e usuários ("clientes")? Onde se situa o Modelo de Atenção Integral à Saúde nessa "empresa"? Sua estrutura própria de Atenção Primária e Medicina de Família é ainda essencial? O que eram direitos sociais são agora "produtos" para quem puder pagar?
O essencial agora é vender planos (produtos) com menos direitos e mais onerosos como o "Cassi Essencial"?
Por que a questão de custeio foi resolvida com a última reforma estatutária, onerando-se muito mais os associados, e a direção decidiu não ampliar a ESF como deveria? Já poderíamos ter uma estrutura própria com algumas dezenas de milhares de usuários a mais cadastrados na ESF e, no entanto, o foco da direção mudou e a cobertura da ESF ainda é a mesma que deixamos ampliada em 2018 (estava estagnada desde 2013).
Essa é uma questão de cultura e de valores dos grupos dirigentes, que estamos chamando a atenção na discussão do modelo assistencial da Cassi.
Seguimos em um próximo texto a questão dos desafios e perspectivas da Atenção Primária à Saúde e ESF em nossa Caixa de Assistência.
William Mendes
Ex-diretor de saúde da Cassi
Referências:
1. Informação, Educação e Comunicação no contexto de implementação da Estratégia de Saúde da Família da CASSI - Relatório final, Brasília - DF, 10 de dezembro de 2001 a 22 de fevereiro de 2002. Departamento de Comunicação e Saúde - Centro de Informação Científica e Tecnológica Fundação Oswaldo Cruz.
2. Documento Diretor para Organização de Serviços Próprios. CASSI - SEDE, DIRETORIA DE SAÚDE. MAIO/2001.
3. "Reforma estatutária avança com a participação do Corpo Social " - O Espelho Nacional de abril de 1996.
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