03/06/24. Segunda-feira
Impressão
É estratégico estimular demanda em rede prestadora?
Enquanto caminhava pela orla da Praia Grande neste feriado, pensava nas coisas da vida. Vendo o cenário e as pessoas na paisagem, me veio à mente a questão da saúde e da não saúde, inclusive da saúde mental, e a questão do saber e do não saber.
Sempre que começo um texto sobre a Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil procuro situar leitoras e leitores sobre o que estou tratando no texto. A Cassi é uma autogestão gerida de forma paritária entre o patrocinador BB (o governo) e os associados (trabalhadores). É uma operadora de saúde segundo a legislação. Compra serviços caríssimos no mercado privado de hospitais, clínicas, cooperativas médicas, medicamentos e materiais como próteses, órteses etc. Para a autogestão se manter existindo é fundamental usar da melhor forma possível os recursos no cuidado da saúde de seus participantes.
Feita a explicação inicial, registro que fiquei muito incomodado ao ver logo cedo, no sábado, uma matéria nas redes sociais sobre nossa autogestão em saúde anunciando como uma grande conquista a novidade de que agora qualquer um dos 588 mil participantes do sistema pode se cadastrar numa empresa capitalista de consultas por telemedicina com psicólogos e psiquiatras... sem recomendação e orientação adequada por parte das equipes de saúde ESF (da Estratégia de Saúde da Família) da própria Caixa de Assistência.
Aí, um leigo em gestão de saúde, em gestão de saúde do modelo assistencial que nós preconizávamos na Cassi, poderia me dizer assim: - Ué, não é uma boa notícia? Pelo que a operadora anunciou, é uma ótima notícia! Agora qualquer usuário dos planos do sistema Cassi pode fazer quantas consultas quiser com psicólogo e psiquiatra. É só criar uma conta lá na empresa conveniada e pronto. Que mal há nisso?
Eu fico admirado, mas não surpreso, na forma como as coisas se desenvolvem no mundo atual. E fico me cobrando por que eu insisto em perder meu tempo elaborando comentários sobre coisas relativas à nossa Caixa de Assistência. No fundo eu sei por que me cobro isso: porque alguém que tem conhecimento sobre algo não pode se isentar de dizer o que sabe sobre aquilo. Eu conheço a Cassi e o modelo assistencial, conheço o mercado onde ela opera e os problemas da autogestão. Não posso me calar!
A notícia sobre um convênio com uma empresa do mercado para que os participantes do sistema Cassi possam fazer consultas à vontade com seus sócios ou profissionais é uma notícia no mínimo preocupante para a sustentabilidade da operadora, para os próprios assistidos dos planos e para o modelo que a Cassi deveria perseguir caso queira sobreviver por bastante tempo.
Sério: vendo a forma como a notícia foi dada, qualquer gestor de saúde que olha os custos do sistema saberia o que estou dizendo. É uma temeridade a notícia! É um incentivo ao gasto aberto sem resolutividade aparente e com risco de uma conta impagável para a operadora.
Mas vai entender! Isso não deveria ser problema meu, nem preocupação minha. Sei de diversas pessoas dentro da gestão da operadora que deveriam saber que nosso modelo não era para ter foco no estímulo aos participantes para fazerem suas "demandas" na rede prestadora assim como está na propaganda, ao sabor do mercado.
Era para ser o inverso. Era para um participante da Cassi só passar por uma consulta ou exame na rede privada capitalista consumidora dos recursos do sistema Cassi caso um médico ou alguém da própria equipe de família que acompanha e monitora aquele participante sugerisse a marcação da consulta ou exame. Repito: era para toda a gestão da Cassi ter isso em mente! O que mudou tanto?
Então, por que eu estou preocupado com essa notícia esquisita, chamando os 588 mil participantes do sistema a saírem se cadastrando na tal empresa conveniada e fazendo consultas quantas vezes quiserem? A empresa vai lucrar mais com o estímulo da própria operadora que vai pagar a conta para seus usuários irem às comprar no mercado de venda de serviços de saúde. Francamente!
O mundo humano está muito esquisito. Vai saber quantas daquelas pessoas que vi por uma hora na orla da Praia Grande não são participantes dos planos de saúde da Cassi e não poderiam começar já a se cadastrarem na tal empresa e marcarem consultas com psicólogos e psiquiatras à vontade... (É a lógica do Emplasto Brás Cubas que expliquei aos usuários da Cassi quando era gestor eleito da operadora)
A impressão que tenho ao ler essa notícia é que o modelo que a Caixa de Assistência está adotando desde os governos Temer e Bolsonaro (e seus indicados) e as gestões eleitas do Grupo Mais é o modelo aberto, curativo, comprador e pagador de serviços no mercado privado da saúde, impagável, que não tem nada a ver com um modelo preventivo, gestor e orientador do usa da rede de forma racional e sustentável.
Um estímulo ao uso indiscriminado de serviços contratados na rede, sem acompanhamento da gestão da Cassi não é algo razoável. Isso não é nem Estratégia de Saúde da Família e nem Atenção Primária, como repetem na forma de um mantra. Atenção Primária deveria ter consequência longitudinal no vínculo ou fidelização na relação equipes de saúde e participantes.
É a opinião de alguém que geriu a Cassi.
William Mendes
Post Scriptum: o texto anterior desta série pode ser lido aqui.