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18.12.20

Terceirizar a Cassi é decisão de alto risco



Opinião:

Tempos incertos, amanhãs indefinidos. Apesar da pandemia que alterou o cotidiano do mundo, realidade causada por um vírus - o novo coronavírus -, volto a registrar minhas preocupações em relação a algo anterior à pandemia: a crise do capitalismo e a sempre presente necessidade de lucro de seus agentes, a crise permanente do mercado de saúde que visa lucro com a doença e a decisão dos atuais gestores da Cassi e do patrocinador Banco do Brasil de terceirizar a atividade fim da autogestão Cassi, cuja essência do seu sistema é um modelo assistencial próprio de Atenção Primária e Medicina de Família e programas de saúde com monitoramento populacional, sistema organizado a partir de unidades próprias de saúde, as CliniCassi.

Inicio o artigo repetindo o que já disse nos outros textos de opinião e preocupação com os destinos da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil: respeito a opinião dos responsáveis pelo projeto "Bem Cassi" - dirigentes e funcionários -, mas vejo essa terceirização da essência da associação como uma decisão de alto risco para o futuro da autogestão e da atenção à saúde do conjunto dos trabalhadores que dela dependem. A Cassi é ainda uma das maiores e mais antigas autogestões em saúde do país, criada pelos trabalhadores do banco público em 1944 e ela é anterior a tudo quanto é modismo, tendência e referência do "mercado" de saúde brasileiro, anterior ao Sistema Único de Saúde e às leis e legislação existentes hoje e que favorecem claramente o mercado ao invés dos sistemas cooperativados de saúde que não visam lucro e seus beneficiários.

Quando chegamos eleitos à gestão da Cassi, em junho de 2014, passamos rapidamente a estudar e conhecer o que era o sistema de saúde brasileiro e mundial, os modelos e formas de organização do atendimento à saúde de grupos populacionais, públicos e privados, estruturas e agentes dentro dos sistemas, legislações, modelos preventivos e modelos curativos, estruturas primárias, secundárias, terciárias etc. Acreditem: conhecer o mercado de saúde exige estômago forte e firmeza de propósito porque tem muita coisa errada no "mercado". Nós fizemos os estudos e desenvolvemos nossas estratégias de defesa da Cassi e dos associados com o nosso olhar do mundo do trabalho, o nosso olhar nas decisões tinha o lado dos trabalhadores, no curto, médio e longo prazos.

MERCADO ATUA ONDE DÁ MAIS LUCRO

Logo que chegamos, uma notícia de grande relevância no mercado de saúde paulista se destacava naqueles primeiros meses de trabalho nosso como gestores da Cassi. Um grande e tradicional hospital na capital paulistana anunciava nos jornais que estava fechando sua maternidade após 35 anos de existência. As justificativas eram aquelas que a gente conhece do sistema capitalista no setor: taxa de ocupação dos leitos inferior ao esperado, retorno baixo dos investimentos, blá blá blá. O impressionante nas matérias que li é que não havia constrangimento algum em dizer que a maternidade iria dar lugar a uma área que estava dando muito retorno (lucro): câncer! O hospital iria investir em tratamento de câncer! 

Pois é! Mercado é mercado. Mercado segue tendências. Tendências mudam de uma hora para outra. Business, negócios. Stakeholders, parceiros, agentes do mercado. A linguagem da indústria da saúde é imensa, não vou me alongar. Só lembro aos meus colegas que têm representação dos trabalhadores, as entidades associativas, sindicatos e conselhos de usuários, que essa coisa de seguir ou se balizar pelo mercado para definir os rumos da autogestão Cassi é uma escolha de alto risco e de difícil retorno. 

No momento, e por causa da crise anterior, a Atenção Primária/Medicina de Família é uma tendência interessante para o mercado. Por isso que estão surgindo empresas, parceiros, pessoas interessadas em prestar serviços de APS/MFC (Medicina de Família e Comunidade). Dura quanto tempo essa tendência? Nos últimos anos, vimos até médic@s de família da Cassi saírem da associação para abrirem seus próprios consultórios e oferecerem o mesmo serviço para os usuários e empresas locais. De novo: tendência de mercado é tendência de mercado. Quanto dura? A Cassi é para durar décadas. Não é uma empresa episódica, de momento. como são inclusive os planos de saúde privados.

Ao longo do período de trabalho à frente da diretoria de saúde da Cassi vimos muitas coisas acontecerem no mercado, no sistema público, na legislação do setor, vimos diversas reorganizações dos vendedores de serviços de saúde (médicos, "cooperativas" e empresas), vimos as guerras jurídicas, vimos a quebradeira de grandes do setor como a Unimed Paulistana e hospitais. Vimos governos serem derrubados por golpe, o SUS sendo atacado e os direitos trabalhistas sendo perdidos e vimos os governos golpistas atuando para favorecer o mercado privado e dificultando a vida das autogestões e de seus participantes, que tiveram que dobrar, triplicar seus gastos com saúde enquanto o patronato diminuiu suas obrigações.

Também aproveitamos o período para apostar no modelo assistencial da Caixa de Assistência, modelo organizado de forma inversa ao do mercado à época. A base e a riqueza da Cassi são suas estruturas próprias de saúde primária, as CliniCassi e as Unidades Cassi nos Estados. Ampliar essa estrutura é essencial, e é barato! Esclarecemos as dúvidas e até as posturas de má-fé que se tinham em relação à importância e eficiência das unidades próprias de atendimento a saúde da Cassi. Provamos que o custo administrativo das unidades era muito baixo perto do efeito de cuidar da população local, sendo parte dela crônica. Uma equipe de família é um investimento muito pequeno em comparação à despesa assistencial evitada na rede privada local, tanto para atendimentos mais simples quanto para questões mais complexas.

A Cassi desenvolveu estudos que mostraram a eficiência da ESF/CliniCassi com estrutura própria (estudos feitos entre 2015/2018). Enquanto isso, os agentes do mercado de saúde afundavam, se reorganizavam porque os custos estavam quebrando o setor, tanto dos hospitais quanto dos planos de saúde, porque o modelo irracional de serviços por procura, emergencial e curativo, é impagável. Modelos próprios como o da Caixa de Assistência mostraram que fazer prevenção, promoção, acompanhar pacientes crônicos ao longo do tempo por equipes multidisciplinares e programas de saúde eram a melhor estratégia e os custos com saúde eram menores inclusive para as faixas etárias maiores, que o mercado não quer nem ouvir falar.

Eu volto a perguntar aos meus colegas dos sindicatos, das associações e dos conselhos de usuários se eles realmente acham que a terceirização da atividade fim da Cassi, através do piloto do "Bem Cassi" em Curitiba e depois no Brasil inteiro parece ser a melhor forma de investir os novos recursos que os associados confiaram ao Plano de Associados da autogestão? Quando foram feitos os estudos e os debates profundos a respeito dessa decisão administrativa daqueles que estão no poder no momento? A escolha é uma das opções disponíveis e não compete a mim questionar a direção, ela tem sua ideologia.

Eu acharia prudente que as representações dos trabalhadores da ativa e aposentados da comunidade Banco do Brasil, uma comunidade com um grupo populacional que tem 400 mil vidas abrigadas no Plano de Associados, refletissem a respeito dessa terceirização da essência da Caixa de Assistência neste momento da história da autogestão. 

É isso! Preocupações... Se cuidem porque a pandemia vai longe no país dos governantes aliados ao vírus mortal.

William


Post Scriptum

Se tiverem interesse, leiam aqui o artigo anterior. Dentro dele tem o link para o primeiro a respeito da questão.


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