Autogestão: uma modalidade das operadoras da saúde suplementar que por suas características pode ousar desenvolver modelos de Atenção Primária e Medicina de Família
Osasco, 10 de março de 2024. Domingo.
"O óbvio é aquilo que nunca é visto até que
alguém o manifeste com simplicidade" (Kahlil Gibran)
Para fazer um bate-papo com gestores e operadores de uma autogestão em saúde, decidi visitar minhas memórias sobre os conhecimentos e experiências que tive o privilégio de adquirir ao ter sido eleito diretor de saúde de uma das maiores operadoras do Brasil na modalidade autogestão: a Cassi dos trabalhadores do maior banco público do país.
Fiquei pensando nos últimos dias quais temáticas poderia abordar para contribuir com a direção e operadores de uma autogestão em saúde. Fui buscar na memória quais informações mais me surpreenderam e foram novidade quando cheguei à Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil para atuar na diretoria justamente responsável pelo modelo assistencial daquela autogestão.
Uma característica pessoal que deve ter contribuído para minha percepção relativamente rápida do que se tratava a autogestão na qual fazia parte da direção é gostar de ler e estudar. Isso facilitou minha passagem de quatro anos pela direção da Cassi. Outro fator essencial foi a qualidade das equipes que trabalhavam conosco na gestão, pois sem os ensinamentos dos profissionais da Cassi e sem os debates francos e fraternos não teria aprendido o que sei sobre gestão de saúde.
As autogestões fazem parte das modalidades de operadoras da saúde suplementar reguladas e fiscalizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Elas têm algumas características diferentes das outras modalidades que operam no sistema de saúde. Não são planos de saúde comerciais como os demais que operam no mercado, como as medicinas de grupo, as seguradoras de saúde e as cooperativas médicas. Para o bem e para o mal, os pontos positivos e os negativos das autogestões precisam ser conhecidos tanto por seus gestores quanto pelos participantes da modalidade.
Como gestor da maior autogestão do país, rapidamente entendi o que deveria fazer em quatro anos de gestão e após um planejamento estratégico feito em nossa diretoria, persegui disciplinadamente os eixos dos objetivos traçados por nossas equipes para fortalecer a operadora em si, o modelo assistencial definido após a reforma estatutária (1996) que deu as características atuais da Cassi e para defender os direitos em saúde e de participação na gestão dos associados da Caixa de Assistência.
Peguei para ler um livro que estou achando bastante interessante, um livro com um excelente conteúdo técnico sobre saúde suplementar. Já li um terço do material e fico contente por ter percebido que meus conhecimentos não se perderam sobre o tema. Se trata do livro "Fundamentos, Regulação e Desafios da Saúde Suplementar no Brasil", de Sandro leal Alves, lançado em 2015. O autor escreve muito bem, o que facilita bastante a leitura.
Refletindo a respeito do que poderia abordar com operadores e gestores de uma autogestão em saúde e relembrando o que compreendi ao estudar o modelo assistencial da Cassi e o sistema de saúde no qual ela operava - o mercado privado de venda de serviços de saúde - entendo que os objetivos que persegui durante quatro anos de mandato são boas referências para um bate-papo, uma troca de informações.
1. As autogestões precisam ser conhecidas por seu próprio público, pelos chamados "stakeholders", pelas partes envolvidas e interessadas na operação da autogestão. Infelizmente, a tendência é gerirem a autogestão como se ela fosse uma empresa do mercado de saúde suplementar como as medicinas de grupo ou seguradoras de saúde, por exemplo. Só de não atuar com a informação correta na apresentação da autogestão para os seus operadores e participantes, já teremos pela frente uma enormidade de problemas que resultarão no consumo inadequado dos recursos da operadora. E insatisfação, muita insatisfação e até judicialização.
2. Feita a lição de casa básica, compreender que a autogestão é uma autogestão e que isso dá a ela características bem distintas das demais operadoras de saúde que operam no mercado de venda de serviços e produtos de saúde, desenvolver a melhor forma de usar os recursos para cuidar da saúde de seus participantes ao longo do tempo.
Uma operadora do sistema de saúde suplementar, dependendo mais ou menos de alguma estrutura própria de saúde que tenha, atua no sistema (mercado) usando seus recursos (receitas) para comprar procedimentos e produtos caríssimos num mercado que visa lucro com a doença das pessoas.
Esse fato precisa ser tratado com a realidade devida, se os participantes das operadoras de saúde tiverem boa saúde os capitalistas que vendem serviços e produtos terão leitos vazios e lucros menores. Um modelo preventivo na autogestão vai diminuir o lucro do mercado e os hospitais, médicos, clínicas e vendedores de OPMEs não vão ficar contentes com isso. Entendem? Os recursos da autogestão serão utilizados de forma mais adequada também.
É fundamental, por isso, que os stakeholders da autogestão compreendam que ela tem menos liberdade para escolher sua carteira de "clientes" (público é definido por lei), tem dificuldade de repassar para as mensalidades toda a inflação médica para reequilibrar anualmente o balanço, e o perfil de seus participantes em geral contém faixas etárias maiores que as operadoras do mercado que visam lucro.
3. Tendo claro que uma autogestão não é um plano de saúde comercial (que visa lucro), que ela tem algumas limitações para compor sua carteira de usuários, reajustar mensalidades e comprar serviços no mercado de saúde através de contratos com redes credenciadas, a direção e os operadores devem desenvolver objetivos realistas com a natureza da autogestão e definir estratégias para isso.
4. Uma das principais características das autogestões para atuar na prevenção de doenças e na qualidade da saúde da população assistida é o longo prazo de permanência dos participantes no sistema. Em geral, são grupos de trabalhadores que passarão décadas dentro da modalidade, tanto os titulares do plano quanto seus dependentes e familiares permitidos pela legislação. Aí entram os modelos de saúde que monitoram e atuam com cada indivíduo assistido ao longo de muitos anos, permitindo com um bom gerenciamento do modelo, orientar o melhor uso das redes credenciadas, protegendo tanto os participantes quanto os recursos da autogestão.
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TER UM MODELO ASSISTENCIAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE
Minha sugestão é a autogestão criar e fortalecer um modelo de Atenção Primária que conheça seu público e o acompanhe ao longo da vida e trabalhar fortemente a comunicação com educação em saúde e criação de um espírito de pertencimento à autogestão como um patrimônio daquele grupamento. Os planos de mercado têm dificuldade em fazer isso, porque seus públicos entram e saem. As autogestões tendem a ter seus públicos por décadas!
NÃO HÁ RECURSOS QUE PAGUEM O QUE O MERCADO DA SAÚDE TEM A OFERECER
Estas reflexões são linhas gerais que considero importantes para serem avaliadas em planejamentos estratégicos de uma autogestão em saúde.
As contradições nesta área do saber e da economia são enormes. De um lado, temos os setores que operam na geração das despesas assistenciais, vendendo serviços, materiais, medicamentos, diagnoses e culturas estéticas e do outro temos pessoas e planos de saúde com recursos sempre limitados sendo incentivados ou forçados (até pela justiça) a comprarem aquelas ofertas caras de procedimentos e produtos, ofertas ora necessárias ora desnecessárias. A conta não fecha!
Quando gestor da maior operadora de autogestão do país, criamos uma metodologia de aferição dos resultados em saúde e no uso dos recursos de uma população assistida por um modelo assistencial de Estratégia de Saúde da Família (ESF) no qual os participantes que estavam fidelizados há três anos ou mais tinham resultados no uso dos recursos do plano muito melhores que seus correspondentes das mais diversas faixas etárias que não eram cuidados pela ESF. Os números eram impressionantes, mesmo nas curvas A de despesas do plano.
Durante quatro anos, mesmo enquanto a operadora redefinia sua estrutura de custeio, pois enfrentava à época mais uma série de déficits que acompanham a Cassi há oito décadas, nós apresentamos aos stakeholders o que era a autogestão, seu modelo assistencial ESF/CliniCassi e programas de saúde, aumentamos os cadastrados na ESF em nível nacional, empoderamos as lideranças locais no modelo assistencial e os estudos que fizemos deram coesão na defesa do modelo por ser mais sustentável no tempo.
Enfim, para esse artigo já dei algumas ideias sobre caminhos a serem seguidos por autogestões em saúde pensando em como lidar com suas populações assistidas.
William Mendes
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